sexta-feira, 23 de junho de 2017

"Contos da Lua Vaga" (1953), de K. Mizoguchi


Pontuação: 8,5/10
M/12 | 95 min. | Japão

Realizado por: Kenji Mizoguchi
Escrito por: Matsutarô Kawaguchi, Hisakazu Tsuji, Akinari Ueda, Yoshikata Yoda
Estrelado por: Masayuki Mori, Kinuyo Tanaka, Machiko Kyo, Mitsuko Mito

Os Contos da Lua Vaga é, provavelmente, o filme de Mizoguchi mais admirado no Ocidente. Nesta peça cinematográfica, conta-se a história de um oleiro que é seduzido por uma bela mulher-fantasma e que, com ela, vive um romance que o faz querer voltar para a sua esposa (que transpira amor e cuidado) e para o seu filho (que nos confunde - a dada altura, já não sabemos se respira, se está morto). Com poucos close-ups dos rostos das personagens e mais planos longos, este filme, e outros, pede ao espectador que se sente, que assuma os seus erros, que se arrependa, que assuma. Desta forma, está aberta a porta para a dimensão ética do humano. E isto navegando sempre, de uma forma sublime, entre o real e o imaginário.

Ao ler A Imagem do Cinema, encontrei uma reflexão de Paulo Viveiros que resume muito bem, a meu ver, o cinema de Mizoguchi: diz o professor que este cineasta era um "cineasta do gestual e não da ação, porque o objetivo primeiro é o cinema e a sua dimensão ética, as histórias são apenas um pretexto. Não é o tema da exploração da mulher na sociedade japonesa que é importante nos seus filmes, mas como ele filma isso. Ou seja, como é que o cinema pode assumir e suportar uma história ou um facto de uma forma digna" (Viveiros, 2005: 132).

Tal como disse Jean-Luc Godard, talvez Mizoguchi tenha sido e continue a ser um dos maiores cineastas de sempre.

Referência bibliográfica:
Viveiros, P. (2005). A Imagem do Cinema. História, Teoria e Estética. Lisboa: Ed. Universitárias Lusófonas.

segunda-feira, 19 de junho de 2017

"O Ecrã Global", de Gilles Lipovetsky e Jean Serroy

Gilles Lipovetsky e Jean Serroy são os autores de O Ecrã Global (editada em português pelas Edições 70), uma obra que revela uma grande preocupação com a proliferação dos ecrãs na era contemporânea. Não obstante, ao contrário de um pensamento que é recorrente, hoje, estes pensadores não consideram que haja um empobrecimento da estética dos filmes – o que importa é que nos adeptemos a tudo aquilo que o digital trouxe e que nos dirijamos às salas de cinema de espírito aberto, prontos para pensamentos múltiplos, para saltos espaciais, para temas controversos, para toda uma multiculturalidade. Apesar da enorme concorrência da televisão, dos computadores e dos telemóveis, um dos grandes objetivos de Lipovetsky e de Serroy é mostrar, argumentativamente, que nada pode tirar ao cinema o seu papel de difusor e de aproximador de diferentes espaços, tempos e culturas. Além disso, um dos pontos altos do referido livro encontra-se logo nas páginas introdutórias, onde são explicados os quatro grandes momentos ou ‘idades do cinema’ (cf. Lipovetsky & Serroy, 2010: 15 ss.), que passamos agora a descrever, sucintamente:
1) a época do cinema mudo – o momento em que a sétima arte procurou um estatuto e uma definição artística; a sua referência era, nesta altura, o teatro; filmavam-se, sobretudo, pequenas cenas, nomeadamente dramáticas (e cómicas); a ausência de palavras era compensada com uma mímica exagerada e os cenários trabalhados e as maquilhagens exuberantes eram outras duas estratégias utilizadas pelos cineastas para prender a atenção dos espectadores (veja-se o expressionismo alemão dos anos 20);
2) a época que decorreu entre os anos 30 e os anos 50 – neste tempo, o cinema já era o passatempo popular por excelência; chegámos à fase do sonoro, da aplicação da cor, dos ecrãs panorâmicos e do Cinemascope; “enquadrado por normas genéricas, temáticas, morais, estéticas, este cinema é o cinema do guião, das cabeças de cartaz, das produções de estúdio” (idem, 17); que o grande ecrã nos contava, aqui, eram histórias essencialmente teleológicas – filmes organizados para conduzir a narrativa ao desenlace final (mas não é esta uma condição necessária, presente em todos os produtos cinematográficos?); a rodagem em estúdio era privilegiada em detrimento das filmagens de rua (ainda que tenhamos um neo-realismo italiano marcado por fortes imagens exteriores) e colocava-se uma grande ênfase nas vedetas; já a figura do realizador era secundária – o que  mais importava era a trama;
3) as décadas de 50, 60 e 70 – aqui, o papel das novas gerações foi crucial: vejamos a Nouvelle Vague, em França, o free cinema, na Grã-Bretanha, o cinema contestatário da Europa de Leste, o cinema novo no Brasil e nos anos 70 toda uma nova geração que se apoderou de Hollywood; contrariamente ao que tinha sucedido na segunda época referida por Lipovetsky e Serroy, o que se queria, agora, era filmar na rua, quebrar as normas estabelecidas, trocar as interpretações teatrais das personagens por um naturalismo juvial, impôr uma produção independente; este “cinema acompanha uma nova modernidade individualista, a que é promovida pela sociedade de consumo, pelos seus valores e pela sua contestação: felicidade, sexo, juventude, autenticidade, prazer, liberdade, recusa das normas convencionais e austeras” (idem, 19);
4) os anos 80 – aqui, todas as dimensões do universo cinematográfico foram afetadas (desde a criação ao consumo, passando pela promoção); é por esta mesma altura que surge o chamado ‘ecrã global’ (uma expressão que, segundo os autores que temos vindo a citar, remete para o estado que é possibilitado pelas novas tecnologias da informação e da comunicação; estamos na época do ‘tudo-ecrã’; o cinema é feito de padrões ‘blockbusterizados’ e transnacionais, de elementos cada vez mais miscigenados e multiculturais (cf. idem, 23); se já nos anos 50 o cinema tinha sofrido uma crise devido à ascensão da televisão, temos, aqui, uma nova perda de posição; no entanto, a verdade é que há um desejo cada vez maior de uma vida filmada, há um cinenarcisismo proliferante, “já não se tratar apenas da retração do cinema, mas da expansão do espírito do cinema no seio de uma cinevisão globalizada”...
A conclusão a que Lipovetsky e Serroy chegam é esta: o tudo-ecrã não faz com que o cinema ande para trás: “contribui, pelo contrário, para disseminar o olhar-cinema, para duplicar a existência da imagem em movimento, para criar uma cinemania generalizada” (idem, 24). Há, de facto, hoje, todo um espírito cinematográfico que anima o mundo.