Gilles
Lipovetsky e Jean Serroy são os autores de O
Ecrã Global (editada em português pelas Edições 70), uma obra que revela
uma grande preocupação com a proliferação dos ecrãs na era contemporânea. Não
obstante, ao contrário de um pensamento que é recorrente, hoje, estes
pensadores não consideram que haja um empobrecimento da estética dos filmes – o
que importa é que nos adeptemos a tudo aquilo que o digital trouxe e que nos
dirijamos às salas de cinema de espírito aberto, prontos para pensamentos
múltiplos, para saltos espaciais, para temas controversos, para toda uma
multiculturalidade. Apesar da enorme concorrência da televisão, dos
computadores e dos telemóveis, um dos grandes objetivos de Lipovetsky e de
Serroy é mostrar, argumentativamente, que nada pode tirar ao cinema o seu papel
de difusor e de aproximador de diferentes espaços, tempos e culturas. Além disso,
um dos pontos altos do referido livro encontra-se logo nas páginas introdutórias,
onde são explicados os quatro grandes momentos ou ‘idades do cinema’ (cf.
Lipovetsky & Serroy, 2010: 15 ss.), que passamos agora a descrever,
sucintamente:
1)
a época do cinema mudo – o momento em que a sétima arte procurou um estatuto e
uma definição artística; a sua referência era, nesta altura, o teatro;
filmavam-se, sobretudo, pequenas cenas, nomeadamente dramáticas (e cómicas); a
ausência de palavras era compensada com uma mímica exagerada e os cenários trabalhados
e as maquilhagens exuberantes eram outras duas estratégias utilizadas pelos
cineastas para prender a atenção dos espectadores (veja-se o expressionismo
alemão dos anos 20);
2)
a época que decorreu entre os anos 30 e os anos 50 – neste tempo, o cinema já
era o passatempo popular por excelência; chegámos à fase do sonoro, da
aplicação da cor, dos ecrãs panorâmicos e do Cinemascope; “enquadrado por normas genéricas, temáticas, morais,
estéticas, este cinema é o cinema do guião, das cabeças de cartaz, das
produções de estúdio” (idem, 17); que
o grande ecrã nos contava, aqui, eram histórias essencialmente teleológicas –
filmes organizados para conduzir a narrativa ao desenlace final (mas não é esta
uma condição necessária, presente em todos os produtos cinematográficos?); a
rodagem em estúdio era privilegiada em detrimento das filmagens de rua (ainda
que tenhamos um neo-realismo italiano marcado por fortes imagens exteriores) e
colocava-se uma grande ênfase nas vedetas; já a figura do realizador era
secundária – o que mais importava era a
trama;
3)
as décadas de 50, 60 e 70 – aqui, o papel das novas gerações foi crucial:
vejamos a Nouvelle Vague, em França, o free
cinema, na Grã-Bretanha, o cinema contestatário da Europa de Leste, o
cinema novo no Brasil e nos anos 70 toda uma nova geração que se apoderou de
Hollywood; contrariamente ao que tinha sucedido na segunda época referida por
Lipovetsky e Serroy, o que se queria, agora, era filmar na rua, quebrar as
normas estabelecidas, trocar as interpretações teatrais das personagens por um
naturalismo juvial, impôr uma produção independente; este “cinema acompanha uma
nova modernidade individualista, a que é promovida pela sociedade de consumo,
pelos seus valores e pela sua contestação: felicidade, sexo, juventude,
autenticidade, prazer, liberdade, recusa das normas convencionais e austeras” (idem, 19);
4)
os anos 80 – aqui, todas as dimensões do universo cinematográfico foram
afetadas (desde a criação ao consumo, passando pela promoção); é por esta mesma
altura que surge o chamado ‘ecrã global’ (uma expressão que, segundo os autores
que temos vindo a citar, remete para o estado que é possibilitado pelas novas
tecnologias da informação e da comunicação; estamos na época do ‘tudo-ecrã’; o
cinema é feito de padrões ‘blockbusterizados’ e transnacionais, de elementos
cada vez mais miscigenados e multiculturais (cf. idem, 23); se já nos anos 50 o cinema tinha sofrido uma crise
devido à ascensão da televisão, temos, aqui, uma nova perda de posição; no
entanto, a verdade é que há um desejo cada vez maior de uma vida filmada, há um
cinenarcisismo proliferante, “já não se tratar apenas da retração do cinema,
mas da expansão do espírito do cinema no seio de uma cinevisão globalizada”...
A
conclusão a que Lipovetsky e Serroy chegam é esta: o tudo-ecrã não faz com que
o cinema ande para trás: “contribui, pelo contrário, para disseminar o
olhar-cinema, para duplicar a existência da imagem em movimento, para criar uma
cinemania generalizada” (idem, 24). Há,
de facto, hoje, todo um espírito cinematográfico que anima o mundo.