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sexta-feira, 23 de junho de 2017

"Contos da Lua Vaga" (1953), de K. Mizoguchi


Pontuação: 8,5/10
M/12 | 95 min. | Japão

Realizado por: Kenji Mizoguchi
Escrito por: Matsutarô Kawaguchi, Hisakazu Tsuji, Akinari Ueda, Yoshikata Yoda
Estrelado por: Masayuki Mori, Kinuyo Tanaka, Machiko Kyo, Mitsuko Mito

Os Contos da Lua Vaga é, provavelmente, o filme de Mizoguchi mais admirado no Ocidente. Nesta peça cinematográfica, conta-se a história de um oleiro que é seduzido por uma bela mulher-fantasma e que, com ela, vive um romance que o faz querer voltar para a sua esposa (que transpira amor e cuidado) e para o seu filho (que nos confunde - a dada altura, já não sabemos se respira, se está morto). Com poucos close-ups dos rostos das personagens e mais planos longos, este filme, e outros, pede ao espectador que se sente, que assuma os seus erros, que se arrependa, que assuma. Desta forma, está aberta a porta para a dimensão ética do humano. E isto navegando sempre, de uma forma sublime, entre o real e o imaginário.

Ao ler A Imagem do Cinema, encontrei uma reflexão de Paulo Viveiros que resume muito bem, a meu ver, o cinema de Mizoguchi: diz o professor que este cineasta era um "cineasta do gestual e não da ação, porque o objetivo primeiro é o cinema e a sua dimensão ética, as histórias são apenas um pretexto. Não é o tema da exploração da mulher na sociedade japonesa que é importante nos seus filmes, mas como ele filma isso. Ou seja, como é que o cinema pode assumir e suportar uma história ou um facto de uma forma digna" (Viveiros, 2005: 132).

Tal como disse Jean-Luc Godard, talvez Mizoguchi tenha sido e continue a ser um dos maiores cineastas de sempre.

Referência bibliográfica:
Viveiros, P. (2005). A Imagem do Cinema. História, Teoria e Estética. Lisboa: Ed. Universitárias Lusófonas.

sexta-feira, 26 de maio de 2017

"Aconteceu Perto da sua Casa" (1992). Fechem as portas.


Pontuação: 7,5/10

M/18 | 1h35 min. | Comédia, Crime, Drama

Título original: C'est arrivé près de chez vous
Realizado por: Rémy Belvaux, André Bonzel, Benoît Poelvoorde
Escrito por: Rémy Belvaux (story), Rémy Belvaux, André Bonzel, Benoît Poelvoorde e Vincent Tavier (screenplay)
Estrelado por: Benoît Poelvoorde

C'est arrivé près de chez vous é um filme belga que oferece ao espectador uma mescla de comédia, crime, drama e horror durante cerca de uma hora e meia. A obra segue o serial killer "Ben" (Benoît Poelvoorde), um homem extremamente carismático que fala diretamente para a câmara e que, constantemente, se vangloria de todos os crimes horrendos, nojentos e sem sentido que comete.
O filme enceta com o asfixiamento de uma mulher num comboio. O motivo para o crime? Nenhum. Na cena posterior, já num cenário ao ar livre, "Ben" explica como é que se livra das suas vítimas e fá-lo detalhadamente, com uma calma e um sentido de humor que angustiam. Os canais e as pedreiras são os locais de excelência e a quantidade de pedras que são atadas aos corpos depende, como esclarece o protagonista, do físico dos mesmos: ora devem perfazer três vezes o seu peso (no caso de adultos), ora duas (quando os alvos são anões), ora cinco (se se tratar de idosos, aqueles que "têm os ossos mais porosos").
Se o espectador pensa, porventura, que estamos a conhecer um homem sem qualquer formação, desengane-se: "Ben" é formado e, a dada altura, conta, envaidecido, que frequentou o conservatório (foi aí que conheceu a sua namorada “Valerie”); a música e a arquitetura – quer a mais estética, quer a mais funcional – são temas a que o assassino em série se refere frequentemente, assim como a poesia, a arte que está presente no seu espírito na última cena. É curioso como tudo isto parece tornar a sua imoralidade ainda mais revoltante: todas as suas atitudes xenófobas, racistas e misóginas são, afinal, perfeitamente conscientes, refletidas, ponderadas.
Aqui, a violência é a chave e é com ela que temos que aprender a lidar para não desistir do visionamento desta peça cinematográfica. Mas violência contra quem? Contra tudo. Contra todos. Apesar de os alvos favoritos de “Ben” serem os carteiros e os idosos (estes últimos por viverem sozinhos e por terem mais dinheiro), também assistimos à morte de uma criança (a segunda ou terceira que o protagonista matou, em 5 anos, e isto porque, nas suas palavras, “o infanticídio não atrai; as crianças valem pouco”). É durante este assassinato que sentimos vontade de culpabilizar também o repórter, os operadores de câmara e os técnicos de som, pois, apesar de, durante a maior parte do drama, se “limitarem” a documentar o que sucede (notem-se as aspas no verbo), é chegado o momento em que também eles sujam as suas mãos.
C'est arrivé près de chez vous, vencedor do International Critics’ Prize do Festival de Cannes de 1993, não é, de todo, um filme fácil e nem o facto de ser a preto e branco faz com que o sangue das vítimas de “Ben” pareça menos vermelho.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

"O Filho de Saul" (2015). Em busca da moral perdida.


Pontuação: 10/10
M/16 | 107 min. | Drama, Guerra

Título original: Saul fia
País: Hungria
Realizado por: László Nemes (como Nemes László)
Escrito por: László Nemes (como Nemes László) e Clara Royer
Estrelado por: Géza Röhrig, Levente Molnár, Urs Rechn


Abraham: Who's this boy?
Saul: My son.
Abraham: But you have no son.
Saul: I do. I have to bury him.
Abraham: You don't need a rabbi for that.
Saul: At least he'll do what's right.

O Filho de Saul (2015) deu ao realizador húngaro László Nemes o Grande Prémio do Júri e o Prémio da Crítica Internacional no Festival de Cannes de 2015, bem como o Globo de Ouro para Melhor Filme Estrangeiro, no ano seguinte. Este reconhecimento é absolutamente merecido, pois esta obra vem provar que o tema do Holocausto, comummente tratado no mundo do cinema, não está, de todo, esgotado.
Esta longa-metragem reporta-nos até ao ano de 1944. Estamos em Auschwitz (Polónia) e “Saul Ausländer” (interpretado por Géza Röhrig) é um dos membros do Sonderkommando – o nome dado a um grupo de prisioneiros que executava as tarefas mais duras dos campos de concentração, tarefas que os alemães evitavam a todo o custo. Em troca de mais tempo de vida, estes homens tinham que esfregar o chão imundo das câmaras de gás e enterrar os corpos dos seus companheiros.
Logo no início da obra, ouvimos a respiração de um miúdo que sobrevive a uma cremação, uma respiração que finda com a mão de um nazi que termina o que a câmara de gás não conseguiu terminar. “Saul” apercebe-se do sucedido e tenta ficar com o corpo do jovem por forma a proporcionar-lhe um enterro digno. Apesar do risco que corre, o húngaro não desiste de procurar um rabino e de salvar a alma de alguém que foi uma das muitas vítimas da podridão humana. Este filme é, pois, sobre uma missão praticamente impossível. Não obstante, a forma como Nemes filma faz com que nos coloquemos no lugar do protagonista e há momentos em que chegamos a pensar que, se calhar, é possível fazer um pequeno milagre.
A lente de 40mm foi uma das estratégias escolhidas pelo realizador para despoletar envolvimento emocional no público e a ausência de banda sonora torna o ambiente ainda mais realista. Choros, gritos, respirações ofegantes – é isso que ouvimos durante o filme. É “só” isso. Os close-ups do rosto de “Saul” são frequentes e a câmara não fixa faz-nos correr numa tentativa desesperada de obter um mínimo de redenção para a raça humana. Se o objetivo de Nemes era transportar-nos até ao horror de Auschwitz, então, a missão foi muitíssimo bem-sucedida. Ver O Filho de Saul é uma experiência que ultrapassa o meramente cinemático – é uma experiência de vida que nos assola, afoga (na última parte, quase literalmente), entristece.
Inteligente, profundo, humano. Demasiado humano. É isso que este filme é. Estamos perante um retrato de um homem que tenta a todo o curso ressuscitar a moralidade perdida nas cinzas de crematórios que cheiram a nojo. A redenção está no enterro de um menino que sobreviveu ao gás Zyklon B. Um menino que era, sem dúvida, filho de “Saul”. De “Saul” e de todos nós.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

"Get Out" (2017). Dos Lugares Sinistros.



Pontuação: 8,5/10
M/16 | 1h44 m. | Terror, Mistério

Realizado por: Jordan Peele
Escrito por: Jordan Peele
Estrelado por: Daniel Kaluuya, Allison Williams, Catherine Keener, Bradley Whitford


Na passada quinta-feira estreou, nas salas de cinema portuguesas, a primeira longa metragem de Jordan Peele (um nome bem conhecido do público norte-americano pela sua participação nas séries de comédia MADtv e Key & Peele): chama-se Get Out, mas não despoleta vontade de fugir. Pelo contrário: é um filme que pede que fiquemos e que atentemos em todos os seus pormenores com sentido, pormenores que se quedam no devido lugar.
Peele traz-nos a história de "Chris" (Daniel Kaluuya), um jovem de cor que é convidado por "Rose" (Allison Williams) para um fim de semana em casa dos seus pais. Depois de perguntar à namorada se ela, por acaso, disse aos seus progenitores que ele é negro, há uma preocupação que invade o espectador e coloca-se a questão: será que vamos assistir a mais um de tantos filmes sobre o racismo cheio de clichés e de falsos moralismos? O receio desvanece-se com uma cena que é um dos marcos deste filme: o atropelamento de um veado que não é só um atropelamento. É um prelúdio... E é com ele que embarcamos numa aventura tão sinistra que chega a provocar náuseas.


Veja-se, desde logo, a forma amistosa com que "Missy" (Catherine Keener) e "Dean" (Bradley Whitford) recebem "Chris" no seu pujante e eclético lar. Os seus sorrisos e os seus abraços ora parecem sinceros, ora parecem sarcásticos (aliás, todo o filme é um lugar de incerteza e é sobretudo isso que o torna especial). Nós, que assistimos aos seus olhares, aos seus diálogos, aos seus gestos, não sabemos bem o que pensar. Há qualquer coisa que denuncia aquele casal que quer parecer tão afável (e, diga-se, que casal! Peele foi certeiro na escolha dos atores), até mesmo a declaração que "Dean" faz a "Chris", declaração essa que "Rose" já tinha adivinhado: "I would vote Obama for a third term if I could...".
As grandes cenas de suspense de Get Out são provocadas pelos empregados da mansão dos "Armitage", um homem e uma mulher de cor detentores de olhares vazios, de falas sem alma e de atitudes robóticas (o jardineiro protagoniza mesmo um dos melhores momentos do filme - o da corrida noturna, que aparece no trailer). São eles que, primeiramente, deixam "Chris" desconfortável. Depois, vem a festa. Uma festa so white que, a par de um telemóvel que teima em não carregar, chama a atenção do protagonista que começa a acreditar que há algo de muito errado com a família de "Rose"...



Hipnotismo, buracos negros, leilões, fotografias escondidas. Como é que um filme consegue comportar tudo isto sem se tornar exagerado e, consequentemente, desgastante? Porque, a suportar a narrativa de Peele, está toda uma montagem competente: o ritmo das cenas é exímio e os cortes surgem nos momentos mais oportunos. Aqui, há mais lentidão do que freneticidade e ainda bem, porque com um argumento tão duro precisamos disso para conseguir sentir cada batimento cardíaco, cada suspiro, cada calafrio; precisamos de pensar para, depois, nos surpreendermos... E a parte técnica desta obra suporta muito bem essas necessidades. É certo que poderia ter prescindido de uma ou de outra música que nos distrai, mas não é isso faz Get Out não valer a pena.



Esta longa metragem do comediante americano é uma boa surpresa. Por ser macabra, ou constituir-se por personagens e momentos macabros, não agrada a todos. Mas agradará, certamente, àqueles que já estão fartos de ver a temática do racismo ser tratada com muito cuidadinho. Apesar de estarmos perante uma narrativa extremamente linear (chegados à ficha técnica, somos invadidos pela ideia de que tudo fez sentido), a forma como, enquanto espectadores, somos conduzidos, é intensa e apela a questionamentos e a tropeções constantes. Se não estão preparados para tal, então, o melhor é mesmo fugir.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

"O Jardim da Esperança" (2017). Uma Varsóvia cinzenta.


Pontuação: 7/10

M/14 | 2h07 m. | Biografia, Drama, História

Título Original: The Zookeeper's Wife
Realizado por: Niki Karo
Escrito por: Angela Workman, baseado no livro de Diane Ackerman
Estrelado por: Jessica Chastain, Johan Heldenbergh, Daniel Brühl


“Talvez seja por isso que amo tanto os animais. Se olhar nos olhos deles
saberá exatamente o que se passa nos seus corações” - “Antonina Zabinski”.

Baseado no livro de Diane Ackerman (Ed. Presença), O Jardim da Esperança traz-nos a história de um casal que, em plena Segunda Guerra Mundial, decide colocar-se numa situação de risco para salvar judeus. Parece que Niki Karo acertou em cheio na escolha dos atores protagonistas: Jessica Chastain (que sotaque incrível!), Johan Heldenbergh e Daniel Brühl representam "Antonina Zabinski", "Jan Zabinski" e "Lutz Heck", respetivamente, e têm performances brilhantes: desde as palavras que proferem aos olhares que cruzam, tudo neles é exímio. É importante ressalvar ainda a prestação de Timothy Radford que aparece competente no papel do pequeno "Ryszard Zabinski".
"Antonina" e "Jan" são os donos do jardim zoológico de capital da Polónia. É precisamente com imagens deste que o filme de Karo enceta: desde a abertura dos portões aos sorrisos dos que entram para ver os animais, tudo leva a crer que estamos inseridos num cenário de pura felicidade. Mas essa imagem idílica depressa se dissolve: ao nascimento de um elefante (tão bem filmado, tão maravilhoso...) segue-se a morte de tantos outros seres bombardeados pelos aviões de guerra alemães. Estamos em 1939, o ano da Grande Guerra.
Se o bombardeamento anteriormente referido é um dos pontos altos desta película - tal como a cena da violação no gueto e o diálogo entre "Antonina" e "Urszula" (Shira Haas), na cela da cave dos "Zabinski" -, os restantes minutos parecem, todos eles, demasiado comedidos. Cremos que deveriam, precisamente, ser o oposto: afinal, estamos perante a história de uma mulher e de um homem que parecem nutrir um amor infinito tanto pelos da sua espécie como pelos animais não-humanos, um amor que não encontra barreiras, um amor sem medos e sem cobardia... Um amor que vale per se.


"Traz tantos quantos puderes". Se há frase que poderia sintetizar este filme é esta. É isto que "Antonina" pede ao seu marido: que ele salve tantos judeus quanto possível do gueto e que os traga para o zoo, o lugar que dantes pertencia aos animais e que agora pertence a homens que foram tratados como lixo pelos da raça ariana. São muitas as obras que lembram o genocídio judaico - só no cinema temos A Lista de Schindler, A Chave de Sarah, O Pianista... É certo que nenhuma delas juntou o horror humano (ou desumano) ao horror não humano. Mas também é verdade que este filme de Karo não suscita no espectador mais atento o tremor e a dor que era suposto suscitar (a forma como o casal consegue enganar, não raras vezes, os oficiais alemães afasta-se e muito da realidade). Uma banda sonora não tão piano também ajudaria...
De qualquer forma, se acreditarmos que o cinema pode servir como um lugar para a reflexão sobre a nossa condição no mundo e as nossas atitudes, então, O Jardim da Esperança merece uma oportunidade. Estamos perante uma obra que retrata (ainda que longe da perfeição) a forma como dois simples mortais conseguiram salvar 300 judeus no seio de uma Varsóvia cheia de cinzas. Uma Varsóvia do início dos anos 40 do século XX da qual, diga-se, é ofertado, aqui, um excelente retrato histórico. Pelo menos, ficamos com uma ideia do quão devastada foi a capital polaca.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

O Choro de "Seo" em "Primavera, Verão, Outono, Inverno... E Primavera" (2003)


M/12 | 1h43 | Drama, Romance

Título original: Bom yeoreum gaeul gyeoul geurigo bom
Ano: 2003
Realizado por: Ki-duk Kim
Escrito por: Ki-duk Kim
Estrelado por: Ki-duk Kim, Yeong-su Oh, Jong-ho Kim

Escreve Ilda Teresa de Castro em "Empatia e Consciência Moral" (in Cinema & Filosofia. Compêndio, de João M. Grilo e Maria Irena Aparício) que Primavera, Verão, Outono, Inverno... E Primavera (2003) reflete na personagem de "Seo" (Jong-ho Kim) "a importância da inscrição na natureza humana do sentimento e consciência empática para com os outros seres na Natureza" (Castro, 2013: 84).


Certo dia, "Soe" decide atar os corpos de um peixe, de uma rã e de uma cobra a uma pedra, para logo de seguida os abandonar. Quando acorda do seu sono, o pequeno apercebe-se que está numa situação semelhante à dos seres que deixou. "Durante a noite, o monge 'Oh' (Yeong-su Oh), que assistira aos seus atos sem ser visto, prende-lhe uma pedra de tamanho proporcional às costas, servindo-se de uma corda que 'Seo', tal como os pequenos animais que molestou, não consegue desatar" (ibidem). O mestre só aceita libertar o pequeno na condição de este salvar os bichos e avisa-o de que se um deles tiver morrido, então, "Seo" terá uma pedra que carregará, no coração, para o resto da vida. O desfecho do ato bárbaro da personagem interpretada por Jong-ho Kim é este: um sonante choro de lamento pela dor infligida desnecessariamente (cf. idem, 85).


Referência bibliográfica: Castro, I.T. (2013). "Empatia e Consciência Moral". In Grilo, J.M. & Aparício, M.I. (Orgs.), Cinema & Filosofia. Compêndio (pp.47-104). Lisboa: Colibri.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

"100 Metros" (2016). Distâncias (in)términas.


Pontuação: 6,5/10

M/14 | 1h48 min. | Comédia, Drama

Realizado por: Marcel Barrena
Escrito por: Marcel Barrena
Estrelado por: Dani Rovira, Karra Elejalde, Alexandra Jiménez, Maria de Medeiros


"Todo el mundo sufre una enfermedad incurable y degenerativa: la vida" ("Manolo").


O novo filme de Marcel Barrena ergue-se a partir de uma narrativa forte. Não é a primeira vez que este realizador traz ao grande ecrã uma história real e inspiradora – já o havia feito com Mon Pétit, em 2012, um documentário sobre Albert Casals, um homem de cadeira de rodas que, mesmo sem dinheiro, conseguiu embarcar numa longa viagem pelo mundo. 100 metros também apresenta ao espectador uma história verídica sobre outro grande homem, Ramón Arroyo, o espanhol que completou uma prova de triatlo composta por 3,8 kms de natação, 180 kms de bicicleta e 42 kms de maratona, em menos de 17 horas.



Os primeiros minutos de 100 metros revelam uma altura em que tudo parecia correr bem para “Ramón” (Dani Rovira) (supra): além de estar à espera do segundo filho, é reconhecido no seu trabalho, que vai de vento em popa. Mas a estabilidade e a alegria que imperam no início deste drama depressa são substituídas por um jogo de mãos que surge como uma premonição: apercebemo-nos que há algo de errado com o físico da personagem e, num instante, recebemos a informação de que “Ramón” tem esclerose múltipla. A partir do momento do diagnóstico, Barrena convida-nos a sofrer com uma família que ficou sem chão, tal como “Manolo” (interpretado de forma brilhante pelo ator Karra Elejalde) já havia ficado sem teto.
Os grandes momentos desta longa-metragem são proporcionados pelas picardias entre “Ramón” e “Manolo” (infra). A dupla tanto nos consegue oferecer instantes de comédia como diálogos que apelam a uma reflexão profunda e sentida sobre a existência humana. A aproximação entre os dois surge a pedido de “Inma” (Alexandra Jiménez), esposa do primeiro e filha do segundo, uma mulher ansiosa por ver a sua família sentada, pacificamente, à mesa, dividindo, sem discussões, o mesmo lar.



A guerra entre o genro e o sogro acaba por esmorecer à medida que os dois treinam, juntos, para a prova de triatlo. Unidos por um mesmo objetivo – que o escleroso contrarie a ideia de que, dali a um ano, já não conseguirá andar 100 metros –, “Ramón” e “Manolo” acabam por criar uma amizade que traz bons frutos: se o primeiro acaba por questionar as limitações do seu corpo e se supera, dia após dia, o segundo abre o coração para um novo amor, um amor que já vinha anunciado na sua canção favorita – “Noelia” (interpretada pela grandiosa Maria de Medeiros), de Nino Bravo: “Hace tiempo que sueño con ella / y sólo sé que se llama Noelia, / hace tiempo que vivo por ella / y sólo sé que se llama Noelia...” (infra).



Apesar de se alicerçar sobre uma grande história e de contar com um conjunto de performances dignas de aplausos, 100 metros fica muito aquém no que respeita ao primor da técnica. Planos-sequência mal escolhidos, rotações de câmara que surgem sem qualquer necessidade (a forma como o realizador nos faz ver “Ramón”, deitado na cama, mais ou menos a meio do filme, chega a provocar náuseas), uma fotografia que não sabe tirar partido das belezas do campo e músicas que entram naqueles exatos momentos em que a nossa mente pede silêncio (nem o facto de a banda sonora ser de Rodrigo Leão chega para nos fazer perdoar o exagero). Juntando estas críticas a um ou outro cliché (como aquele que espelha a personagem de Ricardo Pereira, um tipo que surge, apenas e só, para mostrar que os amigos são aqueles que estão lá, incondicionalmente, nos maus momentos), podemos asseverar que 100 metros tinha tudo para ser um mau filme. Não obstante, conseguimos perdoar Barrena, pois quando estamos perante histórias de resiliência e de superação, há toda uma esperança que nos conforta e faz sorrir.

segunda-feira, 27 de março de 2017

"O Ato de Matar" (2012). Sobre a Banalidade do Mal.


1h55 min. | Documentário, Biografia, Crime

Título original: The Act of Killing
Realização: Joshua Oppenheimer
Estrelado por: Anwar Congo, Herman Koto, Syamsul Arifin


Em 1965, o governo da Indonésia foi derrubado por militares que, ao assumirem o poder, passaram a assassinar os seus opositores acusados de comunismo. Neste documentário de Joshua Oppenheimer, executores como Anwar Congo ou Herman Koto contam e recriam as suas ações (ver imagem infra) e a banalidade do mal é exibida em cenários inspirados em westerns hollywoodescos. A qualidade da fotografia e da banda sonora fazem de O Ato de Matar muito mais do que uma mera apresentação de acontecimentos passados. Nomeado para o Óscar de Melhor Documentário e vencedor de um BAFTA na mesma categoria, este filme pode ser visto na íntegra e legendado em português no Youtube através do seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=FMzOvxHyBnQ.


domingo, 26 de março de 2017

"A Bela e o Monstro" (2017). Para além das aparências.



Pontuação: 8/10

M/12 | 2h09 min. | Fantasia, Musical

Título original: Beauty and the Beast
Realizador: Bill Condon
Escrito por: Stephen Chbosky, Evan Spiliotopoulos
Estrelado por: Emma Watson, Dan Stevens, Luke Evans, Kevin Kline, Emma Thompson, Ewan McGregor



"I want adventure in the great-wide somewhere,
I wanted more than I can tell...
And for once in might be grand to have someone understand,
I want so much more than they've got planned!" (Bela)

"Think of the one thing that you've always wanted.
Now find it in your mind's eye and feel it in your heart" (Monstro)



Trazer novamente ao grande ecrã um clássico com tantos anos de existência é um desafio que exige reflexão, maturidade, coragem. E cuidado. Muito cuidado. Fazer um remake não é, de todo, uma tarefa fácil, desde logo porque o elemento ‘criatividade’ se queda, naturalmente, mais perto do plano do inatingível. Bill Condon, o realizador de Dream Girls (2006), respeitando o argumento e usufruindo das possibilidades do digital, conseguiu reavivar em nós a paixão por A Bela e o Monstro.
Todos conhecemos a história da jovem destemida, curiosa, perspicaz, sonhadora e estranha aos olhos dos outros que, por forma a salvar o seu pai da clausura, acaba por se fazer prisioneira de um monstro, num castelo frio e moribundo que só conhece o inverno. Falamos de ‘Bela’ (Emma Watson) que, por culpa dos livros que lê e do espírito progressista que a sustenta, consegue ver para além das aparências, captando mesmo a bondade de uma criatura de olhar triste e sombrio que já perdeu a esperança de voltar a ser príncipe e de ver o sol raiar no seu jardim (falamos, claro, do ‘Monstro’, interpretado por Dan Stevens).

O pai de 'Bela', 'Maurice' (Kevin Kline) e 'Bela' (Emma Watson)

A Bela e o Monstro apareceu no cinema, pela primeira vez, em 1946, através de Jean Cocteau. Baseando-se no conto de fadas de Jeanne-Marie Le Prince de Beaumont e no filme do já referido intelectual surrealista, a Walt Disney acabou por apresentar esta obra como o seu 30º clássico, no ano de 1991, através da realização de Gary Trousdale e Kirk Wise.


A Bela e o Monstro (1946), de Jean Cocteau

A Bela e o Monstro (1991), de Gary Trousdale e Kirk Wise

É normal que, antes de ir assistir a este remake, o espectador receie que vá ao cinema perder tempo. Mas a verdade é que o filme de Condon merece ser visto, desde logo porque preserva o coração daquela que foi uma das histórias da nossa infância disneyana - o essencial está lá, quer ao nível da música (Alan Menken), um dos seus grandes motores, quer ao nível da narrativa (o feitiço da rosa, por exemplo, tem o destaque que lhe é merecido). O guarda-roupa de Jacqueline Durran não desilude e toda a componente visual deste A Bela e o Monstro em live-action merece ser apreciada e amada, pois é absolutamente deslumbrante (a cena do primeiro jantar de 'Bela' no castelo, por exemplo, surge em planos cheios de cor e de ritmos com sentido).
No que respeita ao elenco, a escolha não poderia ter sido mais certeira: Emma Watson aparece segura e autêntica no papel de 'Bela', uma personagem que tem semelhanças indiscutíveis consigo (Watson é, como se sabe, uma acérrima defensora de causas feministas, autora de discursos como este: "Feminismo é sobre dar às mulheres a opção de escolherem. (...) É sobre liberdade, libertação, igualdade"). Já as vozes de Ewan McGregor, de Emma Thompson e de Ian Mc Kellen, que dão vida ao candelabro 'Lumière', ao bule 'Mrs. Potts' e ao relógio 'Cogsworth', respetivamente, ditam de forma exímia discursos que provocam em qualquer espectador atento uma série de gargalhadas genuínas.

O relógio (Ian Mc Kellen), o bule (Emma Thompson) e o candelabro (Ewan McGregor), três das personagens que animam A Bela e o Monstro de Bill Condon

Infelizmente, o novo A Bela e o Monstro tem merecido um maior destaque na imprensa nacional e internacional por causa do empregado de 'Gaston' (Luke Evans) 'LeFou', interpretado por Josh Gad, o protagonista do primeiro momento gay do mundo Disney (momento esse que serviu de justificação ao cancelamento da exibição desta película em algumas salas de cinema de outros países). Numa declaração à revista Attitude, Condon explicou que: "LeFou é alguém que um dia quer ser como o Gaston e no outro quer beijar o Gaston. Está confuso sobre aquilo que quer, é alguém que ainda está a perceber os seus sentimentos. E Josh Gad [que protagoniza LeFou] interpreta algo completamente subtil e delicioso”.* Na verdade, estamos perante uma tentativa de 'modernização' do clássico que não acrescenta absolutamente nada à história original e que apenas proporciona olhares demasiado forçados e desnecessários.

'Gaston' (Luke Evans) e 'LeFou' (Josh Gad), os protagonistas do primeiro momento gay da história da Disney


De resto, o filme de Bill Condon cumpre o objetivo de qualquer filme de fantasia: o espectador esquece o mundo real e embarca numa viagem incrível por um mundo de formas e de sons que nos põe a sorrir da mesma forma que sorrimos em 1991.



*Cf.http://observador.pt/2017/03/02/o-primeiro-momento-gay-da-disney-na-bela-e-o-monstro// (consultado a 27.03.2017).

terça-feira, 14 de março de 2017

"São Jorge" (2016). Das orações que a Troika trouxe.


Pontuação: 7,5/10

M/14 | 1h52min | Drama

Realizado por: Marco Martins
Escrito por: Ricardo Adolfo e Marco Martins
Estrelado por: Nuno Melo, Mariana Nunes, David Nunes

O novo filme de Marco Martins começa com uma oração de “Jorge” (Nuno Melo) a São Jorge. Este momento espiritual inicial depressa se deixa camuflar pela respiração ofegante e pela água que escorre do pescoço do protagonista, que está notoriamente cansado. A dicotomia inicial vai estar presente até ao final do filme através de um homem que encarna o sofrimento de tantos outros portugueses que, no decorrer do ano de 2011, num país invadido pela Troika, se viram obrigados a fazer coisas que até então consideravam impensáveis e injustificáveis. 
Depois de Alice (2005), Marco Martins volta a recorrer a Nuno Melo, que surge seguro, competente e merecedor do prémio que ganhou, por este filme, no Festival de Veneza: com o seu porte atlético, “Jorge” aparece indestrutível por fora e arrasado por dentro. É o reflexo cru e duro de um país que respira austeridade, tal como “Daniel Blake” o é no filme de 2016 de Ken Loach. Aliás, as parecenças entre os argumentos são notórias: ambos se deixam contar num cenário profundamente desumanizado (compare-se, desde logo, a conversa telefónica do início do filme inglês em fundo preto com a cena do banco de São Jorge, uma cena na qual se escutam vozes sem rosto a falar de empréstimos).
“Jorge”, além de ser operário de uma fábrica que está prestes a abrir falência, também é um boxeur que descobre o mundo das cobranças difíceis e um pai que luta desesperadamente para evitar que o seu filho “Nelson” (David Semedo) vá para o Brasil com a sua mãe “Susana” (Mariana Nunes). O somatório entre as suas dificuldades financeiras e o seu amor incondicional leva a personagem a tentar ganhar algum dinheiro extra a trabalhar numa das muitas empresas de cobranças difíceis que apareceram acompanhadas da crise económica. Intimidar é-lhe penoso, bater fora do ringue vai contra os seus princípios morais, mas a vida não para, ela própria, de lhe dar bofetadas.
Marco Martins contou ao GPS (Sábado) que, a início, “queria fazer um filme sobre boxe”. Mas queria igualmente “que ele tivesse uma ideia social”, “porque não há boxeurs ricos em Portugal. Aqui, quando se fala de filmes sobre boxe, fala-se sobre gente pobre... e eu queria pegar nessa metáfora de gente que luta literalmente pela vida”.* O guião construiu-se a partir do momento em que o realizador se apercebeu que muitos desses boxeurs usavam da sua condição física para ir a casa das pessoas exigir o pagamento de dívidas. Urge perguntar: estará “Jorge” assim tão desesperado ao ponto de cobrar as dívidas dos outros para poder pagar as suas próprias?
A resposta à pergunta anterior vai surgindo num cenário realista, pintado com diálogos despidos de encenações supérfluas e com os bairros da Jamaica e da Bela Vista filmados friamente e sem adereços desnecessários. A fotografia é o elemento técnico deste filme que mais salta à vista: a escuridão de “Jorge” é a escuridão de São Jorge, uma obra que dilata a nossa retina mas que, ainda assim, deixa algo por dizer e qualquer coisa por acontecer.


segunda-feira, 13 de março de 2017

O que há de comum entre Eisenstein e Brian De Palma?

 

O Couraçado Potemkine (1925)

1h15 min. | Drama, História

Título original: Bronenosets Potyomkin
Realizado por: Sergei Eisenstein
Escrito por: Nina Agadzhanova

Estrelado por: Aleksandr Antonov, Vladimir Barsky, Grigori Aleksandrov


Os Intocáveis (1987)

M/16 | 1h59 min. | Crime, Drama, Thriller

Título original: The Untouchables
Realizado por: Brian De Palma
Escrito por: Oscar Fraley, Eliot Ness, David Mamet
Estrelado por: Kevin Costner, Sean Connery, Robert De Niro


Foi em 1925 que surgiu um dos filmes mais aclamados de todos os tempos: O Couraçado Potemkine, de Sergei Eisenstein, um espelho do motim do couraçado Potyomkin, ancorado em Odessa. Alicerçada sobre uma ideologia profunda, esta obra consegue compaginar a dramaturgia enquanto aspeto fundamental do cinema com os impactos essenciais providos de inovações técnicas como a montagem. 
À semelhança de uma tragédia clássica, O Couraçado Potemkine encontra-se dividido em cinco partes: 1) “Homens e Vermes”; 2) “O Drama do Castelo da Popa”; 3) “O Sangue Clama Vingança”; 4) “A Escadaria de Odessa”; 5) “Azáfama do Combate”. Podemos dizer que a vida a bordo, o motim, a morte, a violência, a dor e, sobretudo, as duras condições de vida do povo russo sob a alçada do Czar são os principais elementos que compõem a sua narrativa. 
Os Intocáveis, de Brian De Palma, chegou em 1987. A obra conta com Kevin Costner, Robert de Niro e Sean Connery nos principais papéis (um faz de agente do FBI, o outro de chefe da máfia e o outro de polícia). A história é simples: trata-se de um retrato biográfico de Eliot Ness centrado nas suas tentativas de colocar Al Capone (um gangster ítalo-americano que liderou um grupo criminoso dedicado ao contrabando, durante o período da Lei Seca, nos EUA) na prisão, um retrato que tem como fundo uma banda sonora composta por Ennio Morricone que nos consegue transportar, realmente, para Chicago.

Imagem de Os Intocáveis (1987)

Com este thriller, o cineasta americano tentou homenagear Eisenstein e a famosa cena da escadaria de Odessa, uma das mais lembradas, citadas, amadas e odiadas do mundo da sétima arte. É impossível falarmos do cinema soviético dos anos 20 sem relembrar, desde logo, as imagens chocantes da quarta parte de O Couraçado Potemkine (imagens como a que se segue):

Imagem de O Couraçado Potemkine (1925) - a escadaria de Odessa

Eisenstein acreditava que uma das funções do cinema era mexer com as emoções dos espectadores (leiam-se os artigos que compõem O Sentido do Filme e A Forma do Filme, ambos traduzidos para português). Através do uso de técnicas de montagem inovadoras (o travelling lateral, p. ex.), o cineasta russo conseguiu que ninguém ficasse (e que fique, ainda hoje) indiferente ao seu primeiro filme. A cena da escadaria de Odessa é frenética mas, ao mesmo tempo, parece demasiado demorada. Nela, o horror segue-se ao horror. Se pensávamos que o clímax tinha sido atingido aquando daquele close-up da mão pisada do rapaz da camisola branca, depressa nos apercebemos que seremos confrontados com algo ainda mais duro: o plano que se lhe segue mostra-nos uma mãe a ser baleada e a empurrar, involuntariamente, o carrinho do seu bebé, que desce, degrau a degrau, circundado por corpos e rostos de pânico (ver imagem infra):

Imagem de O Couraçado Potemkine (1925) - a escadaria de Odessa

É precisamente esta cena do carrinho de bebé que aparece no filme de Brian De Palma. Não obstante, o realizador de Os Intocáveis não recorre à freneticidade de Eisenstein, mas sim à técnica do slow motion, um recurso comummente usado para causar tensão no espectador. Neste caso, tensão e recordação.

Imagem de Os Intocáveis (1987) - homenagem  de De Palma à cena da escadaria de Odessa