terça-feira, 14 de março de 2017

"São Jorge" (2016). Das orações que a Troika trouxe.


Pontuação: 7,5/10

M/14 | 1h52min | Drama

Realizado por: Marco Martins
Escrito por: Ricardo Adolfo e Marco Martins
Estrelado por: Nuno Melo, Mariana Nunes, David Nunes

O novo filme de Marco Martins começa com uma oração de “Jorge” (Nuno Melo) a São Jorge. Este momento espiritual inicial depressa se deixa camuflar pela respiração ofegante e pela água que escorre do pescoço do protagonista, que está notoriamente cansado. A dicotomia inicial vai estar presente até ao final do filme através de um homem que encarna o sofrimento de tantos outros portugueses que, no decorrer do ano de 2011, num país invadido pela Troika, se viram obrigados a fazer coisas que até então consideravam impensáveis e injustificáveis. 
Depois de Alice (2005), Marco Martins volta a recorrer a Nuno Melo, que surge seguro, competente e merecedor do prémio que ganhou, por este filme, no Festival de Veneza: com o seu porte atlético, “Jorge” aparece indestrutível por fora e arrasado por dentro. É o reflexo cru e duro de um país que respira austeridade, tal como “Daniel Blake” o é no filme de 2016 de Ken Loach. Aliás, as parecenças entre os argumentos são notórias: ambos se deixam contar num cenário profundamente desumanizado (compare-se, desde logo, a conversa telefónica do início do filme inglês em fundo preto com a cena do banco de São Jorge, uma cena na qual se escutam vozes sem rosto a falar de empréstimos).
“Jorge”, além de ser operário de uma fábrica que está prestes a abrir falência, também é um boxeur que descobre o mundo das cobranças difíceis e um pai que luta desesperadamente para evitar que o seu filho “Nelson” (David Semedo) vá para o Brasil com a sua mãe “Susana” (Mariana Nunes). O somatório entre as suas dificuldades financeiras e o seu amor incondicional leva a personagem a tentar ganhar algum dinheiro extra a trabalhar numa das muitas empresas de cobranças difíceis que apareceram acompanhadas da crise económica. Intimidar é-lhe penoso, bater fora do ringue vai contra os seus princípios morais, mas a vida não para, ela própria, de lhe dar bofetadas.
Marco Martins contou ao GPS (Sábado) que, a início, “queria fazer um filme sobre boxe”. Mas queria igualmente “que ele tivesse uma ideia social”, “porque não há boxeurs ricos em Portugal. Aqui, quando se fala de filmes sobre boxe, fala-se sobre gente pobre... e eu queria pegar nessa metáfora de gente que luta literalmente pela vida”.* O guião construiu-se a partir do momento em que o realizador se apercebeu que muitos desses boxeurs usavam da sua condição física para ir a casa das pessoas exigir o pagamento de dívidas. Urge perguntar: estará “Jorge” assim tão desesperado ao ponto de cobrar as dívidas dos outros para poder pagar as suas próprias?
A resposta à pergunta anterior vai surgindo num cenário realista, pintado com diálogos despidos de encenações supérfluas e com os bairros da Jamaica e da Bela Vista filmados friamente e sem adereços desnecessários. A fotografia é o elemento técnico deste filme que mais salta à vista: a escuridão de “Jorge” é a escuridão de São Jorge, uma obra que dilata a nossa retina mas que, ainda assim, deixa algo por dizer e qualquer coisa por acontecer.


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