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quinta-feira, 3 de agosto de 2017

"La Mujer sin Cabeza" (2008). Do ser "Verónica".


Pontuação: 7,5/10

M/12 | 1h27 | Drama, Mistério, Thriller

Países: Argentina, França
Realizado por: Lucrecia Martel
Escrito por: Lucrecia Martel
Estrelado por: María Onetto, Claudia Cantero, Inés Efron


La Mujer sin Cabeza, de Lucrecia Martel, enceta numa estrada onde vemos crianças a brincar. Depressa os seus risos inocentes dão lugar à música que toca no rádio do carro de “Verónica” (interpretada pela brilhante e segura María Onetto). Daí até abraçarmos um silêncio profundo e incómodo pouco tempo decorre. Depois da dentista bater em algo, enquanto conduz, nada ouvimos. Talvez apenas um eco da sua respiração acelerada. Nesta mesma cena inicial, acabamos por ficar trancados com a protagonista, dentro do seu carro, e, tal como ela, não sabemos o que fazer. De repente, começa a chover e percebemos que não podemos parar de ver esta obra, pois a forma como a realizadora filma os pingos de água a bater no vidro é, pura e simplesmente, perfeita.
O cinema de Martel é uma espécie de espelho de relações familiares e dos seus tormentos: nesta longa-metragem, temos uma mãe que não se recorda da existência das netas, uma traição e ainda uma jovem que surpreende a família ao levar uma namorada para casa. Não descurando a importância destes pormenores, a verdade é que o foco do argumento e da própria câmara é sempre “Verónica”. É ela que é filmada de perto, de muito perto, e é na cabeça dela que entramos sem nunca entrar, verdadeiramente. Depois do acidente da cena inicial, o mistério instala-se e as lágrimas tornam-se bastante presentes nos olhos da protagonista, que não sabe se atropelou um ser humano ou um animal. O ambiente em que nos quedamos enquanto espectadores é tão intimista que, às tantas, até nos questionamos se, nós próprios, fizemos alguma coisa de mal. Será que, de alguma forma, também somos culpados?
O típico cinema de Hollywood habituou-nos a obter respostas, mas, aqui, Martel nada mais nos deixa a não ser enigmas. A personagem principal é, ela mesma, um enigma. Ainda assim, a forma como os familiares agem com ela é bastante terna e até carnal. Parece, por vezes, que todos, marido, sobrinhos e irmãs, lhe querem arrancar um pedaço de carne por forma a conseguir ler todos os seus silêncios. Talvez por isso "Veronica" chegue até nós em cacos. Talvez por isso sintamos que só a água (não me recordo de um filme onde este elemento tenha tanto poder) a consegue acalmar: a da chuva que cai, a do chuveiro que a limpa dos pecados e a das lágrimas que a conduzem a um estado catártico que é meramente momentâneo.
Este filme é a prova de que o cinema tem, em si, a capacidade de nos fazer colocar no lugar do outro. Em La Mujer sin Cabeza, o essencial é sentir por “Verónica” e, mais do que isso, sentir com “Verónica”.

quinta-feira, 13 de julho de 2017

"Planeta dos Macacos: A Guerra" (2017). Um verdadeiro espetáculo digital.


Pontuação: 8/10

M/12 | 2h20 min. | Ação, Aventura, Drama

Título original: War for the Planet of the Apes
Realizado por: Matt Reeves
Escrito por: Mark Bomback, Matt Reeves
Estrelado por: Andy Serkis, Woody Harrelson, Karin Konoval, Amiah Miller



"Foi um erro ter-vos trazido. Esta guerra não é vossa..." - "César"

A época sazonal em que nos encontramos costuma ser pouco favorável a todos aqueles apreciadores de cinema que gostam de ver, no grande ecrã, muito mais do que um mero entretém de domingo à tarde. Planeta dos Macacos: A Guerra (2017) estreou hoje nas salas de cinema portuguesas e é uma verdadeira lufada de ar fresco para todos aqueles amantes da sétima arte que estão cansados de ver muita ação e pouca humanidade.
O novo filme de Matt Reeves vem no seguimento de Planeta dos Macacos: A Origem (2011), realizado por Rupert Wyatt, e Planeta dos Macacos: O Confronto (2014), também de Reeves. Com um argumento que não traz grandes novidades – à exceção, talvez, de uma humana primitiva sobre a qual falaremos mais adiante –, esta obra coloca, frente a frente, macacos e homens que pretendem defender a sua espécie mesmo que, para isso, tenham que fazer sacrifícios (como matar os próprios filhos). O confronto entre ambos surge, porque o vírus responsável pelo grande desenvolvimento das capacidades cognitivas dos símios ameaça destruir a raça humana, uma raça que se quer, como reforça o “Coronel” (interpretado por Woody Harrelson), superior. Se, por um lado, os macacos aprendem a falar a nossa linguagem, por outro, ficamos a conhecer homens e mulheres que perdem a fala.


“Nova” (interpretada pela belíssima Amiah Miller) é, talvez, e a par do protagonista “César” (interpretado por Andy Serkis) (ver imagem supra), a personagem que mais emoções despoleta no espectador. Compreendemos que a sétima arte é preciosa quando assistimos a cenas como a do encontro entre esta menina e “Maurice” (Karin Konoval) (ver imagens infra): o esforço que “Nova” faz para comunicar com o símio é arrepiante e a forma ternurenta como este último a olha denota um humanismo por vezes difícil de encontrar entre os membros da nossa espécie. Neste mesmo instante, o que Reeves nos oferece são dois dos mais brilhantes close-ups da história do cinema mais recente.



A par de “Nova”, é introduzida, nesta saga, uma outra nova personagem - “Bad Ape” (interpretado por Steve Zahn) (ver imagem infra): um macaco que, apesar de conseguir falar, aparece quase sempre amedrontado. Ora, é precisamente esta sua característica que nos faz soltar uma ou outra gargalhada num filme onde, ao contrário do que nos indica o título, a ação não é rainha. A guerra não é rainha. Talvez a misericórdia, essa sim, leve a coroa.


Planeta dos Macacos: A Guerra é, e também ao contrário do que se possa pensar, sobre silêncio. Um silêncio ora amargurado, ora vingativo, ora piedoso, ora pacífico. Um silêncio que é suportado e exaltado por uma banda sonora de Michael Giacchino (o compositor da série Lost – Perdidos e do filme de animação Up – Altamente!) bem conseguida e por uma técnica motion capture absolutamente espantosa. Estamos perante uma peça cinematográfica que é, nada mais, nada menos, que uma verdadeira pérola digital.

sexta-feira, 26 de maio de 2017

"Aconteceu Perto da sua Casa" (1992). Fechem as portas.


Pontuação: 7,5/10

M/18 | 1h35 min. | Comédia, Crime, Drama

Título original: C'est arrivé près de chez vous
Realizado por: Rémy Belvaux, André Bonzel, Benoît Poelvoorde
Escrito por: Rémy Belvaux (story), Rémy Belvaux, André Bonzel, Benoît Poelvoorde e Vincent Tavier (screenplay)
Estrelado por: Benoît Poelvoorde

C'est arrivé près de chez vous é um filme belga que oferece ao espectador uma mescla de comédia, crime, drama e horror durante cerca de uma hora e meia. A obra segue o serial killer "Ben" (Benoît Poelvoorde), um homem extremamente carismático que fala diretamente para a câmara e que, constantemente, se vangloria de todos os crimes horrendos, nojentos e sem sentido que comete.
O filme enceta com o asfixiamento de uma mulher num comboio. O motivo para o crime? Nenhum. Na cena posterior, já num cenário ao ar livre, "Ben" explica como é que se livra das suas vítimas e fá-lo detalhadamente, com uma calma e um sentido de humor que angustiam. Os canais e as pedreiras são os locais de excelência e a quantidade de pedras que são atadas aos corpos depende, como esclarece o protagonista, do físico dos mesmos: ora devem perfazer três vezes o seu peso (no caso de adultos), ora duas (quando os alvos são anões), ora cinco (se se tratar de idosos, aqueles que "têm os ossos mais porosos").
Se o espectador pensa, porventura, que estamos a conhecer um homem sem qualquer formação, desengane-se: "Ben" é formado e, a dada altura, conta, envaidecido, que frequentou o conservatório (foi aí que conheceu a sua namorada “Valerie”); a música e a arquitetura – quer a mais estética, quer a mais funcional – são temas a que o assassino em série se refere frequentemente, assim como a poesia, a arte que está presente no seu espírito na última cena. É curioso como tudo isto parece tornar a sua imoralidade ainda mais revoltante: todas as suas atitudes xenófobas, racistas e misóginas são, afinal, perfeitamente conscientes, refletidas, ponderadas.
Aqui, a violência é a chave e é com ela que temos que aprender a lidar para não desistir do visionamento desta peça cinematográfica. Mas violência contra quem? Contra tudo. Contra todos. Apesar de os alvos favoritos de “Ben” serem os carteiros e os idosos (estes últimos por viverem sozinhos e por terem mais dinheiro), também assistimos à morte de uma criança (a segunda ou terceira que o protagonista matou, em 5 anos, e isto porque, nas suas palavras, “o infanticídio não atrai; as crianças valem pouco”). É durante este assassinato que sentimos vontade de culpabilizar também o repórter, os operadores de câmara e os técnicos de som, pois, apesar de, durante a maior parte do drama, se “limitarem” a documentar o que sucede (notem-se as aspas no verbo), é chegado o momento em que também eles sujam as suas mãos.
C'est arrivé près de chez vous, vencedor do International Critics’ Prize do Festival de Cannes de 1993, não é, de todo, um filme fácil e nem o facto de ser a preto e branco faz com que o sangue das vítimas de “Ben” pareça menos vermelho.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

"O Filho de Saul" (2015). Em busca da moral perdida.


Pontuação: 10/10
M/16 | 107 min. | Drama, Guerra

Título original: Saul fia
País: Hungria
Realizado por: László Nemes (como Nemes László)
Escrito por: László Nemes (como Nemes László) e Clara Royer
Estrelado por: Géza Röhrig, Levente Molnár, Urs Rechn


Abraham: Who's this boy?
Saul: My son.
Abraham: But you have no son.
Saul: I do. I have to bury him.
Abraham: You don't need a rabbi for that.
Saul: At least he'll do what's right.

O Filho de Saul (2015) deu ao realizador húngaro László Nemes o Grande Prémio do Júri e o Prémio da Crítica Internacional no Festival de Cannes de 2015, bem como o Globo de Ouro para Melhor Filme Estrangeiro, no ano seguinte. Este reconhecimento é absolutamente merecido, pois esta obra vem provar que o tema do Holocausto, comummente tratado no mundo do cinema, não está, de todo, esgotado.
Esta longa-metragem reporta-nos até ao ano de 1944. Estamos em Auschwitz (Polónia) e “Saul Ausländer” (interpretado por Géza Röhrig) é um dos membros do Sonderkommando – o nome dado a um grupo de prisioneiros que executava as tarefas mais duras dos campos de concentração, tarefas que os alemães evitavam a todo o custo. Em troca de mais tempo de vida, estes homens tinham que esfregar o chão imundo das câmaras de gás e enterrar os corpos dos seus companheiros.
Logo no início da obra, ouvimos a respiração de um miúdo que sobrevive a uma cremação, uma respiração que finda com a mão de um nazi que termina o que a câmara de gás não conseguiu terminar. “Saul” apercebe-se do sucedido e tenta ficar com o corpo do jovem por forma a proporcionar-lhe um enterro digno. Apesar do risco que corre, o húngaro não desiste de procurar um rabino e de salvar a alma de alguém que foi uma das muitas vítimas da podridão humana. Este filme é, pois, sobre uma missão praticamente impossível. Não obstante, a forma como Nemes filma faz com que nos coloquemos no lugar do protagonista e há momentos em que chegamos a pensar que, se calhar, é possível fazer um pequeno milagre.
A lente de 40mm foi uma das estratégias escolhidas pelo realizador para despoletar envolvimento emocional no público e a ausência de banda sonora torna o ambiente ainda mais realista. Choros, gritos, respirações ofegantes – é isso que ouvimos durante o filme. É “só” isso. Os close-ups do rosto de “Saul” são frequentes e a câmara não fixa faz-nos correr numa tentativa desesperada de obter um mínimo de redenção para a raça humana. Se o objetivo de Nemes era transportar-nos até ao horror de Auschwitz, então, a missão foi muitíssimo bem-sucedida. Ver O Filho de Saul é uma experiência que ultrapassa o meramente cinemático – é uma experiência de vida que nos assola, afoga (na última parte, quase literalmente), entristece.
Inteligente, profundo, humano. Demasiado humano. É isso que este filme é. Estamos perante um retrato de um homem que tenta a todo o curso ressuscitar a moralidade perdida nas cinzas de crematórios que cheiram a nojo. A redenção está no enterro de um menino que sobreviveu ao gás Zyklon B. Um menino que era, sem dúvida, filho de “Saul”. De “Saul” e de todos nós.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

"Get Out" (2017). Dos Lugares Sinistros.



Pontuação: 8,5/10
M/16 | 1h44 m. | Terror, Mistério

Realizado por: Jordan Peele
Escrito por: Jordan Peele
Estrelado por: Daniel Kaluuya, Allison Williams, Catherine Keener, Bradley Whitford


Na passada quinta-feira estreou, nas salas de cinema portuguesas, a primeira longa metragem de Jordan Peele (um nome bem conhecido do público norte-americano pela sua participação nas séries de comédia MADtv e Key & Peele): chama-se Get Out, mas não despoleta vontade de fugir. Pelo contrário: é um filme que pede que fiquemos e que atentemos em todos os seus pormenores com sentido, pormenores que se quedam no devido lugar.
Peele traz-nos a história de "Chris" (Daniel Kaluuya), um jovem de cor que é convidado por "Rose" (Allison Williams) para um fim de semana em casa dos seus pais. Depois de perguntar à namorada se ela, por acaso, disse aos seus progenitores que ele é negro, há uma preocupação que invade o espectador e coloca-se a questão: será que vamos assistir a mais um de tantos filmes sobre o racismo cheio de clichés e de falsos moralismos? O receio desvanece-se com uma cena que é um dos marcos deste filme: o atropelamento de um veado que não é só um atropelamento. É um prelúdio... E é com ele que embarcamos numa aventura tão sinistra que chega a provocar náuseas.


Veja-se, desde logo, a forma amistosa com que "Missy" (Catherine Keener) e "Dean" (Bradley Whitford) recebem "Chris" no seu pujante e eclético lar. Os seus sorrisos e os seus abraços ora parecem sinceros, ora parecem sarcásticos (aliás, todo o filme é um lugar de incerteza e é sobretudo isso que o torna especial). Nós, que assistimos aos seus olhares, aos seus diálogos, aos seus gestos, não sabemos bem o que pensar. Há qualquer coisa que denuncia aquele casal que quer parecer tão afável (e, diga-se, que casal! Peele foi certeiro na escolha dos atores), até mesmo a declaração que "Dean" faz a "Chris", declaração essa que "Rose" já tinha adivinhado: "I would vote Obama for a third term if I could...".
As grandes cenas de suspense de Get Out são provocadas pelos empregados da mansão dos "Armitage", um homem e uma mulher de cor detentores de olhares vazios, de falas sem alma e de atitudes robóticas (o jardineiro protagoniza mesmo um dos melhores momentos do filme - o da corrida noturna, que aparece no trailer). São eles que, primeiramente, deixam "Chris" desconfortável. Depois, vem a festa. Uma festa so white que, a par de um telemóvel que teima em não carregar, chama a atenção do protagonista que começa a acreditar que há algo de muito errado com a família de "Rose"...



Hipnotismo, buracos negros, leilões, fotografias escondidas. Como é que um filme consegue comportar tudo isto sem se tornar exagerado e, consequentemente, desgastante? Porque, a suportar a narrativa de Peele, está toda uma montagem competente: o ritmo das cenas é exímio e os cortes surgem nos momentos mais oportunos. Aqui, há mais lentidão do que freneticidade e ainda bem, porque com um argumento tão duro precisamos disso para conseguir sentir cada batimento cardíaco, cada suspiro, cada calafrio; precisamos de pensar para, depois, nos surpreendermos... E a parte técnica desta obra suporta muito bem essas necessidades. É certo que poderia ter prescindido de uma ou de outra música que nos distrai, mas não é isso faz Get Out não valer a pena.



Esta longa metragem do comediante americano é uma boa surpresa. Por ser macabra, ou constituir-se por personagens e momentos macabros, não agrada a todos. Mas agradará, certamente, àqueles que já estão fartos de ver a temática do racismo ser tratada com muito cuidadinho. Apesar de estarmos perante uma narrativa extremamente linear (chegados à ficha técnica, somos invadidos pela ideia de que tudo fez sentido), a forma como, enquanto espectadores, somos conduzidos, é intensa e apela a questionamentos e a tropeções constantes. Se não estão preparados para tal, então, o melhor é mesmo fugir.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

"O Jardim da Esperança" (2017). Uma Varsóvia cinzenta.


Pontuação: 7/10

M/14 | 2h07 m. | Biografia, Drama, História

Título Original: The Zookeeper's Wife
Realizado por: Niki Karo
Escrito por: Angela Workman, baseado no livro de Diane Ackerman
Estrelado por: Jessica Chastain, Johan Heldenbergh, Daniel Brühl


“Talvez seja por isso que amo tanto os animais. Se olhar nos olhos deles
saberá exatamente o que se passa nos seus corações” - “Antonina Zabinski”.

Baseado no livro de Diane Ackerman (Ed. Presença), O Jardim da Esperança traz-nos a história de um casal que, em plena Segunda Guerra Mundial, decide colocar-se numa situação de risco para salvar judeus. Parece que Niki Karo acertou em cheio na escolha dos atores protagonistas: Jessica Chastain (que sotaque incrível!), Johan Heldenbergh e Daniel Brühl representam "Antonina Zabinski", "Jan Zabinski" e "Lutz Heck", respetivamente, e têm performances brilhantes: desde as palavras que proferem aos olhares que cruzam, tudo neles é exímio. É importante ressalvar ainda a prestação de Timothy Radford que aparece competente no papel do pequeno "Ryszard Zabinski".
"Antonina" e "Jan" são os donos do jardim zoológico de capital da Polónia. É precisamente com imagens deste que o filme de Karo enceta: desde a abertura dos portões aos sorrisos dos que entram para ver os animais, tudo leva a crer que estamos inseridos num cenário de pura felicidade. Mas essa imagem idílica depressa se dissolve: ao nascimento de um elefante (tão bem filmado, tão maravilhoso...) segue-se a morte de tantos outros seres bombardeados pelos aviões de guerra alemães. Estamos em 1939, o ano da Grande Guerra.
Se o bombardeamento anteriormente referido é um dos pontos altos desta película - tal como a cena da violação no gueto e o diálogo entre "Antonina" e "Urszula" (Shira Haas), na cela da cave dos "Zabinski" -, os restantes minutos parecem, todos eles, demasiado comedidos. Cremos que deveriam, precisamente, ser o oposto: afinal, estamos perante a história de uma mulher e de um homem que parecem nutrir um amor infinito tanto pelos da sua espécie como pelos animais não-humanos, um amor que não encontra barreiras, um amor sem medos e sem cobardia... Um amor que vale per se.


"Traz tantos quantos puderes". Se há frase que poderia sintetizar este filme é esta. É isto que "Antonina" pede ao seu marido: que ele salve tantos judeus quanto possível do gueto e que os traga para o zoo, o lugar que dantes pertencia aos animais e que agora pertence a homens que foram tratados como lixo pelos da raça ariana. São muitas as obras que lembram o genocídio judaico - só no cinema temos A Lista de Schindler, A Chave de Sarah, O Pianista... É certo que nenhuma delas juntou o horror humano (ou desumano) ao horror não humano. Mas também é verdade que este filme de Karo não suscita no espectador mais atento o tremor e a dor que era suposto suscitar (a forma como o casal consegue enganar, não raras vezes, os oficiais alemães afasta-se e muito da realidade). Uma banda sonora não tão piano também ajudaria...
De qualquer forma, se acreditarmos que o cinema pode servir como um lugar para a reflexão sobre a nossa condição no mundo e as nossas atitudes, então, O Jardim da Esperança merece uma oportunidade. Estamos perante uma obra que retrata (ainda que longe da perfeição) a forma como dois simples mortais conseguiram salvar 300 judeus no seio de uma Varsóvia cheia de cinzas. Uma Varsóvia do início dos anos 40 do século XX da qual, diga-se, é ofertado, aqui, um excelente retrato histórico. Pelo menos, ficamos com uma ideia do quão devastada foi a capital polaca.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

"100 Metros" (2016). Distâncias (in)términas.


Pontuação: 6,5/10

M/14 | 1h48 min. | Comédia, Drama

Realizado por: Marcel Barrena
Escrito por: Marcel Barrena
Estrelado por: Dani Rovira, Karra Elejalde, Alexandra Jiménez, Maria de Medeiros


"Todo el mundo sufre una enfermedad incurable y degenerativa: la vida" ("Manolo").


O novo filme de Marcel Barrena ergue-se a partir de uma narrativa forte. Não é a primeira vez que este realizador traz ao grande ecrã uma história real e inspiradora – já o havia feito com Mon Pétit, em 2012, um documentário sobre Albert Casals, um homem de cadeira de rodas que, mesmo sem dinheiro, conseguiu embarcar numa longa viagem pelo mundo. 100 metros também apresenta ao espectador uma história verídica sobre outro grande homem, Ramón Arroyo, o espanhol que completou uma prova de triatlo composta por 3,8 kms de natação, 180 kms de bicicleta e 42 kms de maratona, em menos de 17 horas.



Os primeiros minutos de 100 metros revelam uma altura em que tudo parecia correr bem para “Ramón” (Dani Rovira) (supra): além de estar à espera do segundo filho, é reconhecido no seu trabalho, que vai de vento em popa. Mas a estabilidade e a alegria que imperam no início deste drama depressa são substituídas por um jogo de mãos que surge como uma premonição: apercebemo-nos que há algo de errado com o físico da personagem e, num instante, recebemos a informação de que “Ramón” tem esclerose múltipla. A partir do momento do diagnóstico, Barrena convida-nos a sofrer com uma família que ficou sem chão, tal como “Manolo” (interpretado de forma brilhante pelo ator Karra Elejalde) já havia ficado sem teto.
Os grandes momentos desta longa-metragem são proporcionados pelas picardias entre “Ramón” e “Manolo” (infra). A dupla tanto nos consegue oferecer instantes de comédia como diálogos que apelam a uma reflexão profunda e sentida sobre a existência humana. A aproximação entre os dois surge a pedido de “Inma” (Alexandra Jiménez), esposa do primeiro e filha do segundo, uma mulher ansiosa por ver a sua família sentada, pacificamente, à mesa, dividindo, sem discussões, o mesmo lar.



A guerra entre o genro e o sogro acaba por esmorecer à medida que os dois treinam, juntos, para a prova de triatlo. Unidos por um mesmo objetivo – que o escleroso contrarie a ideia de que, dali a um ano, já não conseguirá andar 100 metros –, “Ramón” e “Manolo” acabam por criar uma amizade que traz bons frutos: se o primeiro acaba por questionar as limitações do seu corpo e se supera, dia após dia, o segundo abre o coração para um novo amor, um amor que já vinha anunciado na sua canção favorita – “Noelia” (interpretada pela grandiosa Maria de Medeiros), de Nino Bravo: “Hace tiempo que sueño con ella / y sólo sé que se llama Noelia, / hace tiempo que vivo por ella / y sólo sé que se llama Noelia...” (infra).



Apesar de se alicerçar sobre uma grande história e de contar com um conjunto de performances dignas de aplausos, 100 metros fica muito aquém no que respeita ao primor da técnica. Planos-sequência mal escolhidos, rotações de câmara que surgem sem qualquer necessidade (a forma como o realizador nos faz ver “Ramón”, deitado na cama, mais ou menos a meio do filme, chega a provocar náuseas), uma fotografia que não sabe tirar partido das belezas do campo e músicas que entram naqueles exatos momentos em que a nossa mente pede silêncio (nem o facto de a banda sonora ser de Rodrigo Leão chega para nos fazer perdoar o exagero). Juntando estas críticas a um ou outro cliché (como aquele que espelha a personagem de Ricardo Pereira, um tipo que surge, apenas e só, para mostrar que os amigos são aqueles que estão lá, incondicionalmente, nos maus momentos), podemos asseverar que 100 metros tinha tudo para ser um mau filme. Não obstante, conseguimos perdoar Barrena, pois quando estamos perante histórias de resiliência e de superação, há toda uma esperança que nos conforta e faz sorrir.

domingo, 26 de março de 2017

"A Bela e o Monstro" (2017). Para além das aparências.



Pontuação: 8/10

M/12 | 2h09 min. | Fantasia, Musical

Título original: Beauty and the Beast
Realizador: Bill Condon
Escrito por: Stephen Chbosky, Evan Spiliotopoulos
Estrelado por: Emma Watson, Dan Stevens, Luke Evans, Kevin Kline, Emma Thompson, Ewan McGregor



"I want adventure in the great-wide somewhere,
I wanted more than I can tell...
And for once in might be grand to have someone understand,
I want so much more than they've got planned!" (Bela)

"Think of the one thing that you've always wanted.
Now find it in your mind's eye and feel it in your heart" (Monstro)



Trazer novamente ao grande ecrã um clássico com tantos anos de existência é um desafio que exige reflexão, maturidade, coragem. E cuidado. Muito cuidado. Fazer um remake não é, de todo, uma tarefa fácil, desde logo porque o elemento ‘criatividade’ se queda, naturalmente, mais perto do plano do inatingível. Bill Condon, o realizador de Dream Girls (2006), respeitando o argumento e usufruindo das possibilidades do digital, conseguiu reavivar em nós a paixão por A Bela e o Monstro.
Todos conhecemos a história da jovem destemida, curiosa, perspicaz, sonhadora e estranha aos olhos dos outros que, por forma a salvar o seu pai da clausura, acaba por se fazer prisioneira de um monstro, num castelo frio e moribundo que só conhece o inverno. Falamos de ‘Bela’ (Emma Watson) que, por culpa dos livros que lê e do espírito progressista que a sustenta, consegue ver para além das aparências, captando mesmo a bondade de uma criatura de olhar triste e sombrio que já perdeu a esperança de voltar a ser príncipe e de ver o sol raiar no seu jardim (falamos, claro, do ‘Monstro’, interpretado por Dan Stevens).

O pai de 'Bela', 'Maurice' (Kevin Kline) e 'Bela' (Emma Watson)

A Bela e o Monstro apareceu no cinema, pela primeira vez, em 1946, através de Jean Cocteau. Baseando-se no conto de fadas de Jeanne-Marie Le Prince de Beaumont e no filme do já referido intelectual surrealista, a Walt Disney acabou por apresentar esta obra como o seu 30º clássico, no ano de 1991, através da realização de Gary Trousdale e Kirk Wise.


A Bela e o Monstro (1946), de Jean Cocteau

A Bela e o Monstro (1991), de Gary Trousdale e Kirk Wise

É normal que, antes de ir assistir a este remake, o espectador receie que vá ao cinema perder tempo. Mas a verdade é que o filme de Condon merece ser visto, desde logo porque preserva o coração daquela que foi uma das histórias da nossa infância disneyana - o essencial está lá, quer ao nível da música (Alan Menken), um dos seus grandes motores, quer ao nível da narrativa (o feitiço da rosa, por exemplo, tem o destaque que lhe é merecido). O guarda-roupa de Jacqueline Durran não desilude e toda a componente visual deste A Bela e o Monstro em live-action merece ser apreciada e amada, pois é absolutamente deslumbrante (a cena do primeiro jantar de 'Bela' no castelo, por exemplo, surge em planos cheios de cor e de ritmos com sentido).
No que respeita ao elenco, a escolha não poderia ter sido mais certeira: Emma Watson aparece segura e autêntica no papel de 'Bela', uma personagem que tem semelhanças indiscutíveis consigo (Watson é, como se sabe, uma acérrima defensora de causas feministas, autora de discursos como este: "Feminismo é sobre dar às mulheres a opção de escolherem. (...) É sobre liberdade, libertação, igualdade"). Já as vozes de Ewan McGregor, de Emma Thompson e de Ian Mc Kellen, que dão vida ao candelabro 'Lumière', ao bule 'Mrs. Potts' e ao relógio 'Cogsworth', respetivamente, ditam de forma exímia discursos que provocam em qualquer espectador atento uma série de gargalhadas genuínas.

O relógio (Ian Mc Kellen), o bule (Emma Thompson) e o candelabro (Ewan McGregor), três das personagens que animam A Bela e o Monstro de Bill Condon

Infelizmente, o novo A Bela e o Monstro tem merecido um maior destaque na imprensa nacional e internacional por causa do empregado de 'Gaston' (Luke Evans) 'LeFou', interpretado por Josh Gad, o protagonista do primeiro momento gay do mundo Disney (momento esse que serviu de justificação ao cancelamento da exibição desta película em algumas salas de cinema de outros países). Numa declaração à revista Attitude, Condon explicou que: "LeFou é alguém que um dia quer ser como o Gaston e no outro quer beijar o Gaston. Está confuso sobre aquilo que quer, é alguém que ainda está a perceber os seus sentimentos. E Josh Gad [que protagoniza LeFou] interpreta algo completamente subtil e delicioso”.* Na verdade, estamos perante uma tentativa de 'modernização' do clássico que não acrescenta absolutamente nada à história original e que apenas proporciona olhares demasiado forçados e desnecessários.

'Gaston' (Luke Evans) e 'LeFou' (Josh Gad), os protagonistas do primeiro momento gay da história da Disney


De resto, o filme de Bill Condon cumpre o objetivo de qualquer filme de fantasia: o espectador esquece o mundo real e embarca numa viagem incrível por um mundo de formas e de sons que nos põe a sorrir da mesma forma que sorrimos em 1991.



*Cf.http://observador.pt/2017/03/02/o-primeiro-momento-gay-da-disney-na-bela-e-o-monstro// (consultado a 27.03.2017).

terça-feira, 14 de março de 2017

"São Jorge" (2016). Das orações que a Troika trouxe.


Pontuação: 7,5/10

M/14 | 1h52min | Drama

Realizado por: Marco Martins
Escrito por: Ricardo Adolfo e Marco Martins
Estrelado por: Nuno Melo, Mariana Nunes, David Nunes

O novo filme de Marco Martins começa com uma oração de “Jorge” (Nuno Melo) a São Jorge. Este momento espiritual inicial depressa se deixa camuflar pela respiração ofegante e pela água que escorre do pescoço do protagonista, que está notoriamente cansado. A dicotomia inicial vai estar presente até ao final do filme através de um homem que encarna o sofrimento de tantos outros portugueses que, no decorrer do ano de 2011, num país invadido pela Troika, se viram obrigados a fazer coisas que até então consideravam impensáveis e injustificáveis. 
Depois de Alice (2005), Marco Martins volta a recorrer a Nuno Melo, que surge seguro, competente e merecedor do prémio que ganhou, por este filme, no Festival de Veneza: com o seu porte atlético, “Jorge” aparece indestrutível por fora e arrasado por dentro. É o reflexo cru e duro de um país que respira austeridade, tal como “Daniel Blake” o é no filme de 2016 de Ken Loach. Aliás, as parecenças entre os argumentos são notórias: ambos se deixam contar num cenário profundamente desumanizado (compare-se, desde logo, a conversa telefónica do início do filme inglês em fundo preto com a cena do banco de São Jorge, uma cena na qual se escutam vozes sem rosto a falar de empréstimos).
“Jorge”, além de ser operário de uma fábrica que está prestes a abrir falência, também é um boxeur que descobre o mundo das cobranças difíceis e um pai que luta desesperadamente para evitar que o seu filho “Nelson” (David Semedo) vá para o Brasil com a sua mãe “Susana” (Mariana Nunes). O somatório entre as suas dificuldades financeiras e o seu amor incondicional leva a personagem a tentar ganhar algum dinheiro extra a trabalhar numa das muitas empresas de cobranças difíceis que apareceram acompanhadas da crise económica. Intimidar é-lhe penoso, bater fora do ringue vai contra os seus princípios morais, mas a vida não para, ela própria, de lhe dar bofetadas.
Marco Martins contou ao GPS (Sábado) que, a início, “queria fazer um filme sobre boxe”. Mas queria igualmente “que ele tivesse uma ideia social”, “porque não há boxeurs ricos em Portugal. Aqui, quando se fala de filmes sobre boxe, fala-se sobre gente pobre... e eu queria pegar nessa metáfora de gente que luta literalmente pela vida”.* O guião construiu-se a partir do momento em que o realizador se apercebeu que muitos desses boxeurs usavam da sua condição física para ir a casa das pessoas exigir o pagamento de dívidas. Urge perguntar: estará “Jorge” assim tão desesperado ao ponto de cobrar as dívidas dos outros para poder pagar as suas próprias?
A resposta à pergunta anterior vai surgindo num cenário realista, pintado com diálogos despidos de encenações supérfluas e com os bairros da Jamaica e da Bela Vista filmados friamente e sem adereços desnecessários. A fotografia é o elemento técnico deste filme que mais salta à vista: a escuridão de “Jorge” é a escuridão de São Jorge, uma obra que dilata a nossa retina mas que, ainda assim, deixa algo por dizer e qualquer coisa por acontecer.