sábado, 23 de setembro de 2017

"Mother!" (2017). Das Calmarias Apocalípticas.


Pontuação: 9/10
M/16 | 2h01m. | Drama, Terror, Mistério

Realizado por: Darren Aronofsky
Escrito por: Darren Aronofsky
Estrelado por: Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Ed Harris, Michelle Pfeiffer



"I wanna make a Paradise."
- "Mother"

Mother! é um filme audacioso, mas que não agrada a qualquer um. Penso que estamos perante uma daquelas obras cinematográficas sem meio-termo: ora amamo-la, ora odiamo-la e, em qualquer dos casos, com a maior das nossas forças. Este novo filme de Aronofsky, realizador do aclamado Black Swan (2010), graças à sua grandiosidade e barbaridade, salta fora da corriqueirice da Paramount Pictures e obriga-nos a aceitar a ideia de que nem todo o cinema americano é lixo. 
A história que chegou, na passada quinta-feira, ao grande ecrã, parece bastante simples: é sobre uma mulher que, aos poucos, dia após dia, reconstrói a casa do seu marido, deteriorada por um incêndio. Além da sua enorme habilidade para trabalhos manuais, ela, a mother (Jennifer Lawrence) (ver a primeira imagem, infra), é uma dona de casa exemplar e uma esposa devota. Já o marido (Javier Bardem) é um escritor mundialmente conhecido que atravessa uma enorme crise, uma crise que faz com que da sua caneta não saia qualquer tinta ou do seu pénis qualquer esperma.


Apesar do bloqueio da personagem de Bardem, os primeiros minutos de filme conseguem transmitir-nos alguma paz. Veja-se uma das cenas iniciais, aquela em que a porta da mansão se abre, naquela manhã solarenga em que Lawrence se levanta de uma forma algo desconcertante e, de uma maneira tão ímpar, olha para aquele campo verde, tão imenso e maravilhoso... Nós, espectadores, respiramos aquele mesmo ar puro (e tudo graças ao exuberante trabalho de realização!). Arriscaria dizer que ficamos com vontade de morar ali, naquele mesmo lugar. Mas o silêncio é fugaz (se é que há algum silêncio nesta obra!) e a tranquilidade que reinava na mansão do casal culmina aquando da chegada de um médico (Ed Harris) que, com pouco tempo de vida, quer conhecer o seu ídolo, o Poeta. Atrás dele vem a sua esposa (Michelle Pfeiffer) (ver imagem infra). E depois os filhos deles. E depois, mais gente... Tanta gente... 


Em Mother!, a calmaria é tão efémera que, quando damos por nós, num ápice, num abrir e piscar de olhos, já estamos no centro de um Apocalipse: os visitantes do casal protagonista são intrusivos, a câmara de Aronofsky é intrusiva, tudo é intrusivo. A cada minuto de filme, sentimos o nosso batimento cardíaco a acelerar mais e mais, a nossa respiração torna-se ofegante e não conseguimos retirar o olhar da tela, por muito que o nosso cérebro nos diga "chega!", "basta!". A arrumação dá lugar ao caos. A degradação parece não ter fim. Os gritos de Lawrence são dela. São nossos. São de todos aqueles que acreditam, como o filósofo Nietzsche acreditava, que devemos martelar todos os ídolos e toda aquela moral de rebanho com um martelo, porque ir com a multidão é o mesmo que viver uma mentira. É deixarmo-nos sugar. Ainda assim, não se pense que, com isto, quero dizer que este filme tem como objetivo transmitir esta mensagem ou qualquer outra em particular: em boa verdade, creio que o grande intuito de Aronofsky era deixar o espectador atordoado, confuso, impotente, e isto tomando como muleta uma operação de câmara absolutamente divina.

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

"Una" (2016). Seduções improváveis.



Pontuação: 7/10

M/16 | 1h34m. | Drama

Realizado por:
Benedict Andrews
Escrito por:
David Harrower (baseado na sua peça "Blackbird")
Estrelado por: Ruby Stokes, Rooney Mara, Ben Mendelsohn


"I don't know anything about you except you abused me"
- "Una" (Rooney Mara)

Podemos entender Una como um filme que conta não uma, mas duas histórias, ao mesmo tempo: a primeira, sobre um amor entre um adulto e uma criança de 13 anos; a segunda, sobre um caso de pedofilia que obriga o homem envolvido a mudar a sua identidade e a rapariga abusada a sobreviver com relações sexuais vazias. Cabe ao espectador escolher qual das duas vence, no final.
Esta longa-metragem é baseada numa peça de teatro, Blackbird, de David Harrower, o que explica que o seu argumento seja contado, por parte do realizador Benedict Andrews (estamos perante a sua estreia no cinema), sem grandes pressas. Em Una, é tudo lento e pesado. Os próprios protagonistas Ben Mendelsohn (“Ray”) e Rooney Mara (“Una” que, em jovem, é brilhantemente representada por Ruby Stokes - ver fotografia infra) vestem a pele de personagens sofridas, nostálgicas e incompreendidas. Personagens a quem o tempo não cura as feridas, pelo contrário: nesta obra, a passagem do tempo só traz mais dor, de tal forma que a personagem principal, com 27 anos, ainda nem conseguiu abandonar a casa da mãe, largar o ninho, construir uma vida autónoma.


Por forma a tentar compreender o que sucedeu no passado, “Una” procura “Ray” (cujo novo nome é “Pete”) na fábrica onde este trabalha para exigir explicações sobre o que aconteceu há vinte e tal anos atrás, quando os dois se envolveram. A conversa entre os protagonistas é intercalada com uns quantos flashbacks que, pela forma como são construídos, acabam por nos desvincular do lado mais teatral da história. É então que, à medida que os minutos passam, damos por nós a pensar numa série de questões eticamente relevantes, entre as quais: poderá uma relação amorosa entre um adulto e uma criança ser moralmente aceitável?
Não descurando algumas falhas de realização, normais em quem só enveredou agora pelo mundo da sétima arte (veem-se alguns cortes bruscos – logo no início, temos um que nos faz abandonar uma menina, que caminha silenciosamente, para abraçar uma discoteca, discoteca essa onde as luzes neon e a música eletrónica ofuscam e ensurdecem), a verdade é que este filme está cheio de grandiosos close-ups e de outros tantos planos bem construídos (no momento em que se encontra à porta da já referida fábrica, vemos o reflexo de uma “Una” pálida e triste pelo espelho retrovisor do seu carro, um reflexo que mora dentro de um enquadramento quase perfeito). Além disso, como sabemos, não é fácil transpor a linguagem e os gestos tipicamente teatrais para o cinema (relembre-se Fences, de 2016, que falhou, e redondamente, a meu ver, o objetivo). Posto isto, Andrews foi minimamente competente e Una acaba por ser um filme que merece ser visto.