Pontuação: 8/10
M/16 | 1h36 min. | Drama
Título original: Miele
Realizado por: Valeria Golino
Escrito por: Valeria Golino, Francesca Marciano e Valia Santella; baseado na obra de Mauro Covacich
Estrelado por: Jasmine Trinca, Carlo Cecchi, Libero De Rienzo
“Um dia a gente
chega e no outro vai embora
/ Cada um de nós compõe a sua história
/ E cada ser
em si carrega o dom de ser capaz
/ E ser feliz...”
- Maria Bethânia
Miele é uma longa-metragem
italiana, datada de 2013, que marcou a estreia de Valeria Golino na realização
cinematográfica. Baseada no romance A
nome tuo, de Mauro Covacich, esta obra conta a história de “Irene” (brilhantemente
interpretada pela atriz Jasmine Trinca), uma jovem que vive sozinha, à
beira-mar, perto de Roma, num local que, nas suas palavras, consegue ser “o
mais belo” e também “o mais feio”.
Tendo como fundo uma banda sonora que
é, ora clássica, ora moderna, Miele toma
a música como um elemento essencial, um elemento que grita, sobretudo, nos
momentos de clímax. “Irene” não larga, ela própria, os seus headphones. São eles que acompanham a
personagem principal nas suas idas ao México (ver imagem infra), viagens que têm como principal
intuito arranjar medicamentos veterinários para vender a doentes terminais que
querem antecipar a sua morte. É este, de resto, o tema central do filme: a
morte assistida. Como explicou a Professora Laura Ferreira dos Santos no seu
último livro A morte assistida e outras
questões de fim-de-vida, “trata-se da antecipação voluntária da morte em
casos clínicos extremamente graves, irreversíveis, e no respeito de todas as
salvaguardas existentes nas leis despenalizadoras. Pode revestir-se de duas
formas – a auto e a hetero-administrada -, habitualmente designadas de ‘suicídio
(medicamente) assistido’ e ‘eutanásia’” (Santos, 2015: 27). Na peça
cinematográfica de Golino, o que temos são casos de suícidio medicamente assistido. Quer isto dizer que, apesar de
preparar os medicamentos (com água ou vodka), não é “Irene” (aliás, “Mel”, o
seu ‘nome comercial’, o único que os clientes conhecem) que os dá a beber: são os próprios doentes que ingerem o
produto, sendo as suas mãos as últimas a tocar no copo.
Esta longa-metragem revela-se de
extrema pertinência para quem se preocupa em estudar questões éticas levantadas
pelo cinema: isto, porque ajuda a complexificar a questão da morte assistida
clandestina. Será ela correta, em termos morais? E qual é, afinal, a principal
diferença entre a morte assistida clandestina e a morte assistida legal? Além
destas questões, o filme obriga-nos a pensar nos limites do suicídio
medicamente assistido ou até mesmo da eutanásia: quando é que alguém pode
decidir morrer? A pergunta surge no íntimo de “Irene” quando esta se depara com
um engenheiro, o "Sr. Grimaldi" (Carlo Cecchi) (ver imagem infra), que lhe compra o barbitúrico para
pôr fim à sua vida, mas que, nas palavras do próprio, “tem uma saúde de ferro”
(apesar da quantidade exorbitante de cigarros que fuma). O homem não tem
qualquer doença física, mas perdeu o interesse em viver. Ora, será que o sofrimento de ordem psicológico pode constituir uma base aceitável para
conceder a morte assistida?
Quebrando a enorme barreira que
estabeleceu entre si e os seus clientes, “Irene” acaba por dizer o seu nome
verdadeiro ao engenheiro e cria, com ele, uma enorme relação de cumplicidade.
Notamos, ao longo do drama, minuto após minuto, que os laços que se criam entre as duas
personagens devem-se ao facto de ambos estarem sós no mundo. É certo que a protagonista tem
pai e tem um amante, mas o trabalho que escolheu não lhe permite ser sincera com
nenhum dos dois. Desabafar é, para ela, não raras vezes, impossível. O seu rosto denota essa mesma impossibilidade, com expressões que deixam qualquer espectador sensível absolutamente atordoado.
Miele é a realidade e a densidade humanas espelhadas no grande ecrã. Vencedor de uma menção especial do júri ecuménico no Festival de Cannes e finalista do Prémio Lux, este filme é, nada mais, nada menos, que uma estreia em grande da realizadora Golino.
Referência bibliográfica: Santos, Laura Ferreira (2015). A Morte Assistida e Outras Questões de Fim-de-Vida. Coimbra: Almedina.