sábado, 11 de novembro de 2017

"Mel" (2013). Sobre o ir embora.


Pontuação: 8/10

M/16 | 1h36 min. | Drama
Título original: Miele
Realizado por: Valeria Golino
Escrito por: Valeria Golino, Francesca Marciano e Valia Santella; baseado na obra de Mauro Covacich
Estrelado por: Jasmine Trinca, Carlo Cecchi, Libero De Rienzo

Um dia a gente chega e no outro vai embora
/ Cada um de nós compõe a sua história
/ E cada ser em si carrega o dom de ser capaz
/ E ser feliz...
Maria Bethânia

Miele é uma longa-metragem italiana, datada de 2013, que marcou a estreia de Valeria Golino na realização cinematográfica. Baseada no romance A nome tuo, de Mauro Covacich, esta obra conta a história de “Irene” (brilhantemente interpretada pela atriz Jasmine Trinca), uma jovem que vive sozinha, à beira-mar, perto de Roma, num local que, nas suas palavras, consegue ser “o mais belo” e  também “o mais feio”.
Tendo como fundo uma banda sonora que é, ora clássica, ora moderna, Miele toma a música como um elemento essencial, um elemento que grita, sobretudo, nos momentos de clímax. “Irene” não larga, ela própria, os seus headphones. São eles que acompanham a personagem principal nas suas idas ao México (ver imagem infra), viagens que têm como principal intuito arranjar medicamentos veterinários para vender a doentes terminais que querem antecipar a sua morte. É este, de resto, o tema central do filme: a morte assistida. Como explicou a Professora Laura Ferreira dos Santos no seu último livro A morte assistida e outras questões de fim-de-vida, “trata-se da antecipação voluntária da morte em casos clínicos extremamente graves, irreversíveis, e no respeito de todas as salvaguardas existentes nas leis despenalizadoras. Pode revestir-se de duas formas – a auto e a hetero-administrada -, habitualmente designadas de ‘suicídio (medicamente) assistido’ e ‘eutanásia’” (Santos, 2015: 27). Na peça cinematográfica de Golino, o que temos são casos de suícidio medicamente assistido. Quer isto dizer que, apesar de preparar os medicamentos (com água ou vodka), não é “Irene” (aliás, “Mel”, o seu ‘nome comercial’, o único que os clientes conhecem) que os dá a beber: são os próprios doentes que ingerem o produto, sendo as suas mãos as últimas a tocar no copo.


Esta longa-metragem revela-se de extrema pertinência para quem se preocupa em estudar questões éticas levantadas pelo cinema: isto, porque ajuda a complexificar a questão da morte assistida clandestina. Será ela correta, em termos morais? E qual é, afinal, a principal diferença entre a morte assistida clandestina e a morte assistida legal? Além destas questões, o filme obriga-nos a pensar nos limites do suicídio medicamente assistido ou até mesmo da eutanásia: quando é que alguém pode decidir morrer? A pergunta surge no íntimo de “Irene” quando esta se depara com um engenheiro, o "Sr. Grimaldi" (Carlo Cecchi) (ver imagem infra), que lhe compra o barbitúrico para pôr fim à sua vida, mas que, nas palavras do próprio, “tem uma saúde de ferro” (apesar da quantidade exorbitante de cigarros que fuma). O homem não tem qualquer doença física, mas perdeu o interesse em viver. Ora, será que o sofrimento de ordem psicológico pode constituir uma base aceitável para conceder a morte assistida?


Quebrando a enorme barreira que estabeleceu entre si e os seus clientes, “Irene” acaba por dizer o seu nome verdadeiro ao engenheiro e cria, com ele, uma enorme relação de cumplicidade. Notamos, ao longo do drama, minuto após minuto, que os laços que se criam entre as duas personagens devem-se ao facto de ambos estarem sós no mundo. É certo que a protagonista tem pai e tem um amante, mas o trabalho que escolheu não lhe permite ser sincera com nenhum dos dois. Desabafar é, para ela, não raras vezes, impossível. O seu rosto denota essa mesma impossibilidade, com expressões que deixam qualquer espectador sensível absolutamente atordoado. 
Miele é a realidade e a densidade humanas espelhadas no grande ecrã. Vencedor de uma menção especial do júri ecuménico no Festival de Cannes e finalista do Prémio Lux, este filme é, nada mais, nada menos, que uma estreia em grande da realizadora Golino.


Referência bibliográfica: Santos, Laura Ferreira (2015). A Morte Assistida e Outras Questões de Fim-de-Vida. Coimbra: Almedina.

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