sexta-feira, 26 de maio de 2017

"Aconteceu Perto da sua Casa" (1992). Fechem as portas.


Pontuação: 7,5/10

M/18 | 1h35 min. | Comédia, Crime, Drama

Título original: C'est arrivé près de chez vous
Realizado por: Rémy Belvaux, André Bonzel, Benoît Poelvoorde
Escrito por: Rémy Belvaux (story), Rémy Belvaux, André Bonzel, Benoît Poelvoorde e Vincent Tavier (screenplay)
Estrelado por: Benoît Poelvoorde

C'est arrivé près de chez vous é um filme belga que oferece ao espectador uma mescla de comédia, crime, drama e horror durante cerca de uma hora e meia. A obra segue o serial killer "Ben" (Benoît Poelvoorde), um homem extremamente carismático que fala diretamente para a câmara e que, constantemente, se vangloria de todos os crimes horrendos, nojentos e sem sentido que comete.
O filme enceta com o asfixiamento de uma mulher num comboio. O motivo para o crime? Nenhum. Na cena posterior, já num cenário ao ar livre, "Ben" explica como é que se livra das suas vítimas e fá-lo detalhadamente, com uma calma e um sentido de humor que angustiam. Os canais e as pedreiras são os locais de excelência e a quantidade de pedras que são atadas aos corpos depende, como esclarece o protagonista, do físico dos mesmos: ora devem perfazer três vezes o seu peso (no caso de adultos), ora duas (quando os alvos são anões), ora cinco (se se tratar de idosos, aqueles que "têm os ossos mais porosos").
Se o espectador pensa, porventura, que estamos a conhecer um homem sem qualquer formação, desengane-se: "Ben" é formado e, a dada altura, conta, envaidecido, que frequentou o conservatório (foi aí que conheceu a sua namorada “Valerie”); a música e a arquitetura – quer a mais estética, quer a mais funcional – são temas a que o assassino em série se refere frequentemente, assim como a poesia, a arte que está presente no seu espírito na última cena. É curioso como tudo isto parece tornar a sua imoralidade ainda mais revoltante: todas as suas atitudes xenófobas, racistas e misóginas são, afinal, perfeitamente conscientes, refletidas, ponderadas.
Aqui, a violência é a chave e é com ela que temos que aprender a lidar para não desistir do visionamento desta peça cinematográfica. Mas violência contra quem? Contra tudo. Contra todos. Apesar de os alvos favoritos de “Ben” serem os carteiros e os idosos (estes últimos por viverem sozinhos e por terem mais dinheiro), também assistimos à morte de uma criança (a segunda ou terceira que o protagonista matou, em 5 anos, e isto porque, nas suas palavras, “o infanticídio não atrai; as crianças valem pouco”). É durante este assassinato que sentimos vontade de culpabilizar também o repórter, os operadores de câmara e os técnicos de som, pois, apesar de, durante a maior parte do drama, se “limitarem” a documentar o que sucede (notem-se as aspas no verbo), é chegado o momento em que também eles sujam as suas mãos.
C'est arrivé près de chez vous, vencedor do International Critics’ Prize do Festival de Cannes de 1993, não é, de todo, um filme fácil e nem o facto de ser a preto e branco faz com que o sangue das vítimas de “Ben” pareça menos vermelho.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

"O Filho de Saul" (2015). Em busca da moral perdida.


Pontuação: 10/10
M/16 | 107 min. | Drama, Guerra

Título original: Saul fia
País: Hungria
Realizado por: László Nemes (como Nemes László)
Escrito por: László Nemes (como Nemes László) e Clara Royer
Estrelado por: Géza Röhrig, Levente Molnár, Urs Rechn


Abraham: Who's this boy?
Saul: My son.
Abraham: But you have no son.
Saul: I do. I have to bury him.
Abraham: You don't need a rabbi for that.
Saul: At least he'll do what's right.

O Filho de Saul (2015) deu ao realizador húngaro László Nemes o Grande Prémio do Júri e o Prémio da Crítica Internacional no Festival de Cannes de 2015, bem como o Globo de Ouro para Melhor Filme Estrangeiro, no ano seguinte. Este reconhecimento é absolutamente merecido, pois esta obra vem provar que o tema do Holocausto, comummente tratado no mundo do cinema, não está, de todo, esgotado.
Esta longa-metragem reporta-nos até ao ano de 1944. Estamos em Auschwitz (Polónia) e “Saul Ausländer” (interpretado por Géza Röhrig) é um dos membros do Sonderkommando – o nome dado a um grupo de prisioneiros que executava as tarefas mais duras dos campos de concentração, tarefas que os alemães evitavam a todo o custo. Em troca de mais tempo de vida, estes homens tinham que esfregar o chão imundo das câmaras de gás e enterrar os corpos dos seus companheiros.
Logo no início da obra, ouvimos a respiração de um miúdo que sobrevive a uma cremação, uma respiração que finda com a mão de um nazi que termina o que a câmara de gás não conseguiu terminar. “Saul” apercebe-se do sucedido e tenta ficar com o corpo do jovem por forma a proporcionar-lhe um enterro digno. Apesar do risco que corre, o húngaro não desiste de procurar um rabino e de salvar a alma de alguém que foi uma das muitas vítimas da podridão humana. Este filme é, pois, sobre uma missão praticamente impossível. Não obstante, a forma como Nemes filma faz com que nos coloquemos no lugar do protagonista e há momentos em que chegamos a pensar que, se calhar, é possível fazer um pequeno milagre.
A lente de 40mm foi uma das estratégias escolhidas pelo realizador para despoletar envolvimento emocional no público e a ausência de banda sonora torna o ambiente ainda mais realista. Choros, gritos, respirações ofegantes – é isso que ouvimos durante o filme. É “só” isso. Os close-ups do rosto de “Saul” são frequentes e a câmara não fixa faz-nos correr numa tentativa desesperada de obter um mínimo de redenção para a raça humana. Se o objetivo de Nemes era transportar-nos até ao horror de Auschwitz, então, a missão foi muitíssimo bem-sucedida. Ver O Filho de Saul é uma experiência que ultrapassa o meramente cinemático – é uma experiência de vida que nos assola, afoga (na última parte, quase literalmente), entristece.
Inteligente, profundo, humano. Demasiado humano. É isso que este filme é. Estamos perante um retrato de um homem que tenta a todo o curso ressuscitar a moralidade perdida nas cinzas de crematórios que cheiram a nojo. A redenção está no enterro de um menino que sobreviveu ao gás Zyklon B. Um menino que era, sem dúvida, filho de “Saul”. De “Saul” e de todos nós.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

"Get Out" (2017). Dos Lugares Sinistros.



Pontuação: 8,5/10
M/16 | 1h44 m. | Terror, Mistério

Realizado por: Jordan Peele
Escrito por: Jordan Peele
Estrelado por: Daniel Kaluuya, Allison Williams, Catherine Keener, Bradley Whitford


Na passada quinta-feira estreou, nas salas de cinema portuguesas, a primeira longa metragem de Jordan Peele (um nome bem conhecido do público norte-americano pela sua participação nas séries de comédia MADtv e Key & Peele): chama-se Get Out, mas não despoleta vontade de fugir. Pelo contrário: é um filme que pede que fiquemos e que atentemos em todos os seus pormenores com sentido, pormenores que se quedam no devido lugar.
Peele traz-nos a história de "Chris" (Daniel Kaluuya), um jovem de cor que é convidado por "Rose" (Allison Williams) para um fim de semana em casa dos seus pais. Depois de perguntar à namorada se ela, por acaso, disse aos seus progenitores que ele é negro, há uma preocupação que invade o espectador e coloca-se a questão: será que vamos assistir a mais um de tantos filmes sobre o racismo cheio de clichés e de falsos moralismos? O receio desvanece-se com uma cena que é um dos marcos deste filme: o atropelamento de um veado que não é só um atropelamento. É um prelúdio... E é com ele que embarcamos numa aventura tão sinistra que chega a provocar náuseas.


Veja-se, desde logo, a forma amistosa com que "Missy" (Catherine Keener) e "Dean" (Bradley Whitford) recebem "Chris" no seu pujante e eclético lar. Os seus sorrisos e os seus abraços ora parecem sinceros, ora parecem sarcásticos (aliás, todo o filme é um lugar de incerteza e é sobretudo isso que o torna especial). Nós, que assistimos aos seus olhares, aos seus diálogos, aos seus gestos, não sabemos bem o que pensar. Há qualquer coisa que denuncia aquele casal que quer parecer tão afável (e, diga-se, que casal! Peele foi certeiro na escolha dos atores), até mesmo a declaração que "Dean" faz a "Chris", declaração essa que "Rose" já tinha adivinhado: "I would vote Obama for a third term if I could...".
As grandes cenas de suspense de Get Out são provocadas pelos empregados da mansão dos "Armitage", um homem e uma mulher de cor detentores de olhares vazios, de falas sem alma e de atitudes robóticas (o jardineiro protagoniza mesmo um dos melhores momentos do filme - o da corrida noturna, que aparece no trailer). São eles que, primeiramente, deixam "Chris" desconfortável. Depois, vem a festa. Uma festa so white que, a par de um telemóvel que teima em não carregar, chama a atenção do protagonista que começa a acreditar que há algo de muito errado com a família de "Rose"...



Hipnotismo, buracos negros, leilões, fotografias escondidas. Como é que um filme consegue comportar tudo isto sem se tornar exagerado e, consequentemente, desgastante? Porque, a suportar a narrativa de Peele, está toda uma montagem competente: o ritmo das cenas é exímio e os cortes surgem nos momentos mais oportunos. Aqui, há mais lentidão do que freneticidade e ainda bem, porque com um argumento tão duro precisamos disso para conseguir sentir cada batimento cardíaco, cada suspiro, cada calafrio; precisamos de pensar para, depois, nos surpreendermos... E a parte técnica desta obra suporta muito bem essas necessidades. É certo que poderia ter prescindido de uma ou de outra música que nos distrai, mas não é isso faz Get Out não valer a pena.



Esta longa metragem do comediante americano é uma boa surpresa. Por ser macabra, ou constituir-se por personagens e momentos macabros, não agrada a todos. Mas agradará, certamente, àqueles que já estão fartos de ver a temática do racismo ser tratada com muito cuidadinho. Apesar de estarmos perante uma narrativa extremamente linear (chegados à ficha técnica, somos invadidos pela ideia de que tudo fez sentido), a forma como, enquanto espectadores, somos conduzidos, é intensa e apela a questionamentos e a tropeções constantes. Se não estão preparados para tal, então, o melhor é mesmo fugir.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

"O Jardim da Esperança" (2017). Uma Varsóvia cinzenta.


Pontuação: 7/10

M/14 | 2h07 m. | Biografia, Drama, História

Título Original: The Zookeeper's Wife
Realizado por: Niki Karo
Escrito por: Angela Workman, baseado no livro de Diane Ackerman
Estrelado por: Jessica Chastain, Johan Heldenbergh, Daniel Brühl


“Talvez seja por isso que amo tanto os animais. Se olhar nos olhos deles
saberá exatamente o que se passa nos seus corações” - “Antonina Zabinski”.

Baseado no livro de Diane Ackerman (Ed. Presença), O Jardim da Esperança traz-nos a história de um casal que, em plena Segunda Guerra Mundial, decide colocar-se numa situação de risco para salvar judeus. Parece que Niki Karo acertou em cheio na escolha dos atores protagonistas: Jessica Chastain (que sotaque incrível!), Johan Heldenbergh e Daniel Brühl representam "Antonina Zabinski", "Jan Zabinski" e "Lutz Heck", respetivamente, e têm performances brilhantes: desde as palavras que proferem aos olhares que cruzam, tudo neles é exímio. É importante ressalvar ainda a prestação de Timothy Radford que aparece competente no papel do pequeno "Ryszard Zabinski".
"Antonina" e "Jan" são os donos do jardim zoológico de capital da Polónia. É precisamente com imagens deste que o filme de Karo enceta: desde a abertura dos portões aos sorrisos dos que entram para ver os animais, tudo leva a crer que estamos inseridos num cenário de pura felicidade. Mas essa imagem idílica depressa se dissolve: ao nascimento de um elefante (tão bem filmado, tão maravilhoso...) segue-se a morte de tantos outros seres bombardeados pelos aviões de guerra alemães. Estamos em 1939, o ano da Grande Guerra.
Se o bombardeamento anteriormente referido é um dos pontos altos desta película - tal como a cena da violação no gueto e o diálogo entre "Antonina" e "Urszula" (Shira Haas), na cela da cave dos "Zabinski" -, os restantes minutos parecem, todos eles, demasiado comedidos. Cremos que deveriam, precisamente, ser o oposto: afinal, estamos perante a história de uma mulher e de um homem que parecem nutrir um amor infinito tanto pelos da sua espécie como pelos animais não-humanos, um amor que não encontra barreiras, um amor sem medos e sem cobardia... Um amor que vale per se.


"Traz tantos quantos puderes". Se há frase que poderia sintetizar este filme é esta. É isto que "Antonina" pede ao seu marido: que ele salve tantos judeus quanto possível do gueto e que os traga para o zoo, o lugar que dantes pertencia aos animais e que agora pertence a homens que foram tratados como lixo pelos da raça ariana. São muitas as obras que lembram o genocídio judaico - só no cinema temos A Lista de Schindler, A Chave de Sarah, O Pianista... É certo que nenhuma delas juntou o horror humano (ou desumano) ao horror não humano. Mas também é verdade que este filme de Karo não suscita no espectador mais atento o tremor e a dor que era suposto suscitar (a forma como o casal consegue enganar, não raras vezes, os oficiais alemães afasta-se e muito da realidade). Uma banda sonora não tão piano também ajudaria...
De qualquer forma, se acreditarmos que o cinema pode servir como um lugar para a reflexão sobre a nossa condição no mundo e as nossas atitudes, então, O Jardim da Esperança merece uma oportunidade. Estamos perante uma obra que retrata (ainda que longe da perfeição) a forma como dois simples mortais conseguiram salvar 300 judeus no seio de uma Varsóvia cheia de cinzas. Uma Varsóvia do início dos anos 40 do século XX da qual, diga-se, é ofertado, aqui, um excelente retrato histórico. Pelo menos, ficamos com uma ideia do quão devastada foi a capital polaca.